“Não existem mais cidades como antes, incluindo esta que habito. A cidade está aí, reconheço, mas não é a verdadeira. É sua imagem refletida por algum acrílico capaz de retificar a realidade” – de Ernani Buchmann, no livro O Bogart Curitibano, em busca das galochas perdidas, porque “nenhum curitibano deveria passar sem galochas”.
“Retro, Satanás!”, esconjura Ernani Buchmann, “porque não sou nostálgico, nem pretendo liderar o movimento restaurador da vila de antanho”. Feita a ressalva, o escritor lamenta alguns hábitos curitibanos extintos pela obsolescência: “As coalhadas, por exemplo. Alguém ainda deve produzi-las, mas desconheço o local. Com o sabor daquelas da Schaffer, jamais”.
E as galochas, onde foram parar? No conto “Galochas assassinas”, Buchmann lembra bem delas, com Humphrey Bogart em cartaz no Cine Lido: “Nos cinemas, durante os longos períodos de chuva, a entrada de um sujeito de galochas chegava a abafar a trilha sonora”.
Galocha estilo Humphrey Bogart tem de ser preta, da marca Sete Léguas
Lançado em setembro de 2008, o livro de Ernani Buchmann não é autobiográfico, como faz parecer o título. O Bogart Curitibano vem de uma das crônicas, em que o autor é confidente de um funcionário do Tribunal de Justiça que vive escondido em casa: “Não sei se desde a segunda separação ou se desde que comprei, na velha livraria ao lado, um livro chamado Como tornar-se Invisível em Curitiba”. Não é o caso de Ernani Buchmann. Por ter sido presidente do Paraná Clube, essa liga de publicitário e escritor nunca mais conseguiu passear pelas ruas da cidade em brancas nuvens. Intransparente, se fosse bem mais baixinho, com chapéu e capa gabardine, Ernani seria o próprio Humphrey Bogart. Pena que não fuma.
O paranista não esclarece se Humphrey Bogart usava galochas. Mas tudo indica que sim, charmoso e elegante que era: “Os mais bem de vida chegavam a ter mais de uma. E todos desfilavam aquele chlap-chlap de borracha delgada dobrando na sola do pé, os sapatos bem engraxados abrigados dentro delas”.
Ernani desconfia que as galochas sejam hoje mais obsoletas que polainas. Eu diria ainda, são mais obsoletas que o chapéu do Humphrey Bogart. Mas onde foram parar as galochas de Curitiba? Algumas delas devem restar esquecidas nas lojas de utensílios e móveis usados da Rua Riachuelo: “Se fossem jogadas num mesmo local, ao modo dos pneus, seriam um atentado contra a saúde pública. Os ecologistas viriam à mídia bradar contra o perigo das galochas, incapazes de degradar no meio ambiente. Os sanitaristas reclamariam dos focos de reprodução do mosquito da dengue. Milhares de pessoas estariam sendo afetadas, o futuro do cidadão curitibano comprometido”.
Em busca das galochas perdidas, convém esclarecer: existem galochas&galochas. Temos as galochas com modelitos Gucci e Prada, mas as grifes que nos desculpem: coloridas, não são veras galochas. Black is beautiful. Galocha estilo Humphrey Bogart tem de ser preta, da marca Sete Léguas.
Das galochas&galochas, temos de outro tipo. Do tipo desumano, são fáceis de encontrar em Curitiba. Principalmente nesse início de ano, galochas desta forma abundaram: bateram palmas pelo fechamento da Oficina de Música, ovacionaram a situação humilhante dos músicos e bailarinos do Teatro Guaíra. Para evocar o cronista Luís Henrique Pellanda, que agora saia às ruas o anjo higienista de galochas brancas, trazendo às mãos não a espada ou a trombeta, mas uma vassourinha de piaçava para enviar ao quinto dos infernos os pichadores desta Curitiba perdida.
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Bogart curitibano, Ernani Buchmann será empossado nesta segunda-feira na presidência da Academia Paranaense de Letras. Os de meias brancas serão bem-vindos, chatos de galochas não entram.
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