Esta capital modorrenta – como já nos enquadrou a revista Veja – se armou em brios quando o advogado José Roberto Batochio, um dos defensores do ex-presidente Lula, além de insinuar que o juiz Sergio Moro é nazista, chamou Curitiba e o Paraná de “região agrícola do país”, sugerindo que os paranaenses são, antes de tudo, provincianos. Fascistas da zona rural, deu a entender, que se mostram insepultos desde 1945.
Batochio não é o primeiro forasteiro a dizer que Curitiba é uma zona rural, habitada por roceiros. Em 1961, o jornalista Fernando Pessoa Ferreira – autor da “Curitiba, a fria”, crônica que desintegrou a autoestima dos curitibanos – era correspondente da revista Manchete no Paraná quando o escritor Macedo Miranda veio fazer uma reportagem sobre Curitiba. Chegaram cansados do aeroporto e foram direto ao bar do Hotel Iguaçu, hoje Bourbon, para baixar a poeira com um uísque regenerador. Foi já no primeiro copo, e não no terceiro, que Macedo Miranda respirou fundo e comentou, balançando a cabeça: “Pois é, Fernando! Estamos aqui, tomando um uisquinho em plena zona rural!”
Precisamos fazer valer a ironia, o discreto traço do humor curitibano
Espantado, o anfitrião olhou para a Biblioteca Pública do Paraná em frente ao hotel e ponderou: “Zona rural, não! Estamos em pleno centro da cidade!” Macedo Miranda fez o gelo rodar no copo e sorriu: “Ora, Fernando! É claro que estamos em plena zona rural!”
Quando o escritor ia começar um discurso louvando o clima campestre da paisagem em volta, ao mesmo tempo em que Fernando Pessoa Ferreira tentava explicar que a zona rural, propriamente dita, era bem distante daquele hotel de alto gabarito, o absurdo aconteceu. Uma vaca malhada entrou pela portaria, botou os dianteiros no tapete vermelho e mugiu bonito: “Múúú”...
Macedo Miranda era um senhor elegante e de fino trato. Simplesmente tomou outro gole de uísque e, sem engasgar, comentou em voz baixa: “Não falei, Fernando?”
O perfil ligeiramente irônico, ligeiramente cruel, da Curitiba do início dos anos 1960 – uma Curitiba que não existe mais – ficou tão marcado na cultura da cidade que se tornou impossível analisar o introvertido curitibano sem citar “Curitiba, a fria” (publicado em 1967 no volume 3 da coleção Livro de Cabeceira do Homem, da editora Civilização Brasileira). Daí em diante, todas as ironias vêm da mesma fonte, nada mais se cria, tudo se copia ou se transforma.
Em 2009, ao entrevistar Fernando Pessoa Ferreira para o meu livro Curitiba: Melhores Defeitos, Piores Qualidades, perguntei ao pernambucano de Olinda, falecido em 2010 em São Paulo: “Como você encara a trajetória daquela sua crônica?”
“Essa trajetória, em quase 40 anos, revela um dado curioso sobre a alma curitibana: sua extrema suscetibilidade. Aquele texto era apenas um perfil irreverente da Curitiba dos anos 1950 e 1960, onde vivi durante dez anos. A reação que provocou na época foi espantosa: ganhei editoriais irados em todos os jornais. Um deles, O Estado do Paraná, dedicou uma página inteira ao assunto, com fotos de personalidades locais, legendadas com suas respectivas opiniões e títulos sugestivos que as resumiam: ‘Comeu e virou o coxo’, sentenciava um deles. ‘É um ingrato’, deplorava outro. Engraçadíssimo, quando observado a distância. A reação foi tão virulenta que até uma expedição punitiva contra mim, que então morava no Rio, chegou a ser seriamente discutida na Boca Maldita. Veja só: Nelson Rodrigues escreveu que ‘o mineiro só é solidário no câncer’ e não provocou com isso reação tão furibunda nas Alterosas. O curitibano é antes de tudo um exagerado. Ou era...”
Exagerados ou não, só nos resta sorrir com certos exageros. Inclusive quando nos dizem moradores de uma cidade de primeiro mundo. Precisamos fazer valer a ironia, o discreto traço do humor curitibano. A Cidade Sorriso precisa rir desse Batochio, o doutor que fez da agricultura um pejorativo. Ele e seu ilustre cliente serão sempre bem-vindos nos tribunais da República de Curitiba. Os fascistas da zona rural os saúdam!
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