| Foto: Arquivo pessoal

DE ROMA – Bem como sucedeu ao italiano João Paulo I, que segundo uma das teorias conspiratórias foi envenenado pelos guardiões do cofre do Vaticano, o alemão Joseph Ratzinger será um capítulo especial no imaginário romano. Ressaltando sua surpreendente renúncia, as teorias conspiratórias nos levam a imaginar um filme para Francis Ford Coppola: camorra napolitana, máfia americana, terroristas islâmicos, corrupção financeira, envolvendo ainda os relatórios acusando de pedofilia milhares de padres.

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“A verdade e a beleza caminham lado a lado: a beleza é o selo da verdade” – pregava o admirável Bento XVI. A aparência rígida e fria de Joseph Alois Ratzinger era apenas consequência de sua natural timidez e discrição – um comportamento bem conhecido dos curitibanos. Erudito e sofisticado, ele não vai deixar para a posteridade somente as lendas que cercam sua renúncia.

Prefiro acreditar que Ratzinger não será lembrado como o discreto gourmet do Vaticano, mas como um homem de coragem

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Entre outras fábulas romanas, uma das mais conhecidas versa sobre as scappatelle noturnas de Joseph Ratzinger pelo circuito gastronômico de Roma. No antigo ghetto judaico de Roma, diziam os rumores que o então cardeal Ratzinger não deixava de passar pelas mesas do Giggetto al Portico d’Ottavia para degustar as celebradas carciofi alla giudia do Trastevere. Na Piazza dei Librari, ao lado da igreja de Santa Bárbara, até os coroinhas comentavam que o papa tinha sido visto ao cair da noite, de chapéu Borsalino e discreta capa da Burberry’s, comendo bacallà fritto com salada de puntarelli no histórico restaurante Dar Filettaro a Santa Barbara. Em suma: além de frequentar a fila para a pizza do Bafetto, na Via del Governo Vecchio, importantes jornais ventilavam que o contido Benedetto XVI seria um fino bongustai (gourmet).

Sarà il Benedetto?” – era o que se ouvia fora dos muros do Vaticano.

O discreto gourmet da Praça São Pedro só não deve ter sido visto na Via Giulia, onde a Polícia Tributária recentemente reservou mesa na cozinha do restaurante Assunta Madre e prendeu seis empresários acusados de lavagem de dinheiro. O impagável do caso é que o caríssimo Assunta Madre está localizado no coração do Centro Histórico de Roma e quase ao lado da sede da Direção Nacional Antimáfia.

Conforme dizia Bento XVI, “não se bebe mais diretamente da fonte, mas sim do recipiente em que a água nos é oferecida”. Nesta cidade de tantas fontes d’água, todas potáveis, a mais confiável delas para se chegar à verdade acerca das breves fugas de Joseph Ratzinger para desfrutar os sabores da cozinha romana está na Via Borgo Pio, um dos mais encantadores recantos de Roma.

Por um quarto de século, o então arcebispo e cardeal costumava comer no Al Passetto di Borgo, o simpático restaurante a dois passos da Praça São Pedro. Não tinha mesa cativa, trocava algumas palavras com os circunstantes e pedia quase sempre spaghetti alla carbonara, scaloppine com um contorno de funghi e, golosissimo di dolci, não resistia ao ótimo tiramisù da casa, recorda Antonello Fulvimari, filho do patriarca Roberto, que abriu o Al Passetto di Borgo em 1962. O chef da cozinha ainda é o mesmo, Domenico Miani.

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“Bebia sempre e somente água, jamais vinho!” – diz a confiável fonte da Via Borgo Pio, 62. Mas desde quando foi eleito pelos cardeais, em 19 de abril de 2005, nunca mais voltou ao seu restaurante preferido. “Da Papa non è più tornato. Perché dovrei nasconderlo?” – afirma hoje o sincero Antonello, saudoso da estreita relação do antigo freguês com sua família.

Muito além do imaginário, prefiro acreditar que Joseph Ratzinger não será lembrado como o discreto gourmet do Vaticano. Vai ficar para a história como um homem de coragem suficiente para reconhecer que, mesmo ungido pelo Espírito Santo, somos todos iguais perante o tempo. Com toda dignidade, Bento XVI será o primeiro pontífice a assistir a suas próprias exéquias. O mais longo dos velórios, até o último de seus dias de vida.