Hoje em dia é inexplicável como sobrevivemos a tanto.
Na matança do porco, quando chegava o matador os estertores do animal já ecoavam pelos arredores, anunciando a festa. Esticado sobre uma mesa improvisada com velhas tábuas e cavaletes, debatendo-se, urrando e chutando, com quatro carniceiros fortes e experientes segurando-o por cima e pelas patas traseiras, o sovado suíno de quase 200 quilos estava pronto para receber no peito arfante a lâmina pontuda do matador. Do sangue, com alguém contendo algum desperdício, os jorros vermelhos desciam em cascatas numa bacia de metal.
Enquanto o porco se rendia em lenta agonia, em grunhidos espaçados, a gurizada se aproximava para – olho no olho – assistir o gigante ser içado pelas patas traseiras. No fogo ao lado, fervia a água no caldeirão. Depois do couro raspado, esfregado e lavado, a barriga era aberta de cabo a rabo. Da longa cavidade da carcaça saía um bafo morno, junto com o coração, fígado, rins, pulmões e os intestinos, donde nasciam o toucinho, as linguiças e as morcilhas para o pão nosso de cada dia.
Agora a carne é friamente chamada de “proteína animal”
Nesses tempos de agora – quando a carne é friamente chamada de “proteína animal” –, a matança de um porco representa um caminhão frigorífico entregando carcaças carimbadas no supermercado. Naqueles tempos da lamparina, a matança do porco era uma festa de vizinhança. E o velho paiol no fundo da casa colonial se transformava numa oficina de odores e sabores.
Homens num vaivém nervoso, mulheres cortando e provando temperos com cheiro verde, a lide no interior do paiol tinha iniciado no dia anterior. E, muitos meses antes, a ceva do porco. A morte anunciada do porco começava no chiqueiro, quando a melhor lavagem e as maiores porções de grãos e vegetais privilegiavam o eleito. Na véspera do grande evento, tudo começava com a limpeza dos caldeirões, frigideiras e panelas, o afiar das facas, o frenesi da meninada contando histórias macabras do matador e sua pontuda faca.
Na manhã seguinte, o porco amanhecia desconfiado, adivinhando o destino de seu próprio sangue: a morcilha. Da matança nada se perdia, mesmo sem a geladeira. Fundamental era a banha, derretida no imenso tacho para conservar a carne na lata. Do que não se transformava em toucinho, linguiça e torresmo, uma parte era consumida no mesmo dia. Outras partes, retribuídas aos amigos e vizinhos. Para comemorar o bem cevado porco, o vinho também jorrava, o queijo era igualmente repartido e os compadres músicos compareciam de gaita e clarinete para alegrar o banquete.
O cozinheiro Anthony Bourdain, Em busca do prato perfeito, descreveu a mesma tradição em Portugal: “Tive pena daquele porco, imaginando o medo, a dor e o pânico. Mas ele tinha um sabor delicioso. Só desperdiçamos uns poucos gramas de seu peso total”.
O matador era o pesadelo dos porcos, presume-se, e das crianças também – pela lembrança da minha infância. Mas a facada certeira um dia falhou. Foi quando o carrasco levantou a pata esquerda do animal e cravou a faca no sovaco, linha direta com o coração. O bicho esparramou sangue, urrou com o punhal subindo e descendo em vão. O matador recolheu, então, o punhal do fundo do sovaco esquerdo, ergueu-o de novo e o enterrou ainda mais fundo no sovaco direito. Só assim o porco sucumbiu: ele tinha o coração fora do lugar – foi o que imaginamos.
Quem parte reparte; a parte do carniceiro era a nossa melhor parte: a bexiga que o sopro do próprio carrasco transformava numa tão aguardada bola de futebol. E só assim os meninos iam dormir sossegados.
Nas festas da matança do porco, não se sabe como aquela gente inocente sobreviveu à Taenia solium sem o carimbo do Serviço de Inspeção Federal (SIF).
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