| Foto: MuzikAnimal/Wikimedia Commons

Esta é uma antiga história que tem a ver com algo do nosso dia a dia. Primeiro, a história. Depois, o tem a ver.

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Um dos pontos turísticos mais procurados pelos antigos romanos e gregos – sim, já havia turismo na Antiguidade! – eram os colossos de Mêmnon, em Luxor, no Egito. Uma das duas estátuas gigantescas de pedra – com 1,3 mil toneladas e 18 metros de altura – tinha uma característica peculiar que fascinava os visitantes: ela cantava.

Embora as duas estátuas ainda estejam de pé, não há mais a sinfonia de outrora. Mas não se trata de mentira dos antigos. Numerosos relatos de viajantes atestam a mágica que ocorria a cada manhã no meio do deserto. Pouco após o nascer do sol, o colosso do Norte emitia um som descrito pelo geógrafo e historiador grego Estrabão “como um sopro ou assovio” e pelo também geógrafo grego Pausânias como o som metálico e agudo de uma “lira quebrando-se”.

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A vida não se enquadra em nenhum esquema que possa ter sido concebido pelo maior gênio que pisou a terra

Outros diziam que era o chamado melódico de um filho pela mãe. Explica-se: Mêmnon, lendário combatente da Guerra de Troia morto pelo herói grego Aquiles, era filho de Eos – a deusa do amanhecer. Nada mais natural do que ele dar um “oi” à mãe ao vê-la todos os dias.

Mas a essa altura você talvez deva estar se perguntando: peraí, a Ilíada é uma epopeia helênica; o que Mêmnon faz aí no meio das areias egípcias?

De fato, o personagem de Homero entrou de gaiato nessa história. Uma pequena confusão linguística. As estátuas na verdade retratavam o faraó Amenófis III – que havia governado o Egito 3,5 mil anos antes. Os primeiros turistas gregos e romanos que exploraram a região, quando perguntaram aos nativos de quem eram os dois colossos, confundiram os nomes. São meio parecidos: A-meno-fis e Mêmnon.

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A cantoria de um deles pelas manhãs só reforçou a ideia de que se tratava, de fato, do guerreiro de Troia. Mas nem sempre foi assim. A estátua só começou a assoviar depois de um terremoto em 27 a.C., quando parte dela veio ao chão.

Cientistas contemporâneos especulam, com uma boa dose de convicção, que o sismo abriu uma fenda na estátua, que acumulava umidade durante as noites frias do deserto. Ao amanhecer, o forte calor do Saara provocava a rápida evaporação da água que, ao passar pelo buraco estreito, emitia o som que tanto fascinava os visitantes. Tal como ocorre com a chaleira em que esquentamos a água para coar o café da manhã.

Por pouco mais de dois séculos, Mêmnon chamou por sua mãe. Emudeceu em 199 d.C., por obra do azarado e incauto imperador romano Sétimo Severo. Maravilhado com o que ouviu, ele decidiu restaurar o colosso danificado pelo terremoto. Com isso, tampou a fenda. Acabou com a adorável imperfeição. Acabou com a graça.

Típico exemplo daquele velho adágio: “O inferno está cheio de boas intenções”. Ou de como cometemos erros colossais quando ficamos cegos pela obsessão por consertar o que achamos ser imperfeições. E mais do que isso: de querer que tudo seja “perfeito”.

Que fique claro: não há nenhum mal em querer melhorar a si e ao que nos rodeia; muito pelo contrário. O problema é quando alguém está convicto de que sabe o que é a perfeição (ninguém sabe!). Aí mora a tentação de tentar impor sua ideia de mundo perfeito e correto. E isso ocorre em várias esferas: familiar, social, profissional, política e também pessoal – quando não nos aceitamos do jeito que somos.

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Acontece que a vida é rebelde. Não gosta de arreios. Não se enquadra em nenhum esquema que possa ter sido concebido pelo maior gênio que pisou a terra. Muito oportunamente, é descrita como um sopro: quem consegue contê-lo em suas mãos? Em resumo, ela é como todos nós: imperfeita. E nem por isso deixa de ser adorável. E por vezes também é mágica. Como o misterioso assovio do colosso de Mênmon.