Recordar é viver, diz o ditado. A capacidade de lembrar fatos é vista como uma qualidade. Ao contrário, o esquecimento é negativo sinal de fraqueza intelectual ou senilidade. Mas como seria um mundo em que nada fosse esquecido? No qual as doces memórias sempre se misturassem com o amargor de nossas dores e frustrações? Em que convivêssemos com os fantasmas de outros tempos num eterno presente?
A norte-americana Jill Price, portadora de uma síndrome neurológica que a faz se recordar de tudo, tem a resposta: "Imagine se você conseguisse se lembrar de todos os erros que já cometeu", disse certa vez. Jill escreveu o livro The Woman Who Cant Forget (A Mulher que Não Consegue Esquecer) para contar aquilo que chama de "prisão da memória". Ela é capaz, por exemplo, de contar o que comeu no almoço de qualquer dia escolhido aleatoriamente. Sabe o que está ocorrendo no presente, mas tem a impressão de viver aprisionada ao passado.
O escritor argentino Jorge Luis Borges abordou o assunto, sob outra perspectiva, no conto Funes, o memorioso. Após um acidente, o personagem Irineo Funes passa a ter uma memória prodigiosa e não se esquece de mais nada. Mas vive atormentado, pois é incapaz de compreender a realidade. O cão que vê de perfil às 3h14 é uma memória diferente do mesmo cão visto de frente às 3h15. Imerso em tanta informação e em pormenores, Funes simplesmente não consegue generalizar a ideia de um cão. Ou qualquer outro conceito. Em outras palavras: não pensa. "Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair", diz Borges no conto.
Talvez não estejamos muito distantes do drama de não saber o que fazer com tanta informação que acomete o fictício Funes. Ou da eterna recordação dos erros que persegue Jill Price. Celebramos a internet pela profusão de dados que ela nos oferece, mesmo que isso não necessariamente nos torne mais sábios. E, sem muita reflexão, recorremos à web para relatar fatos da vida e expressar ideias e sentimentos que talvez nunca sejam apagados ainda que venhamos a nos arrepender deles.
Essa grande memória eletrônica da humanidade é uma realidade para a qual não temos nenhuma experiência anterior, sobretudo para enfrentar seus aspectos negativos. Uma primeira discussão sobre isso tem sido travada em torno do chamado direito ao esquecimento reconhecido na semana passada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A corte tratava do caso de um espanhol que tinha seu nome associado, na internet, a uma dívida antiga que já havia pago; os juízes então determinaram a retirada da informação da rede. Mas talvez o desafio exija mais do que um direito, e sim uma mudança de percepção. Afinal, esquecer também é viver.
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