Há muito mais do que machismo na revelação de que 65% dos brasileiros concordam, parcial ou integralmente, que mulheres vestidas com roupas curtas merecem ser estupradas conforme mostrou, na semana passada, pesquisa divulgada pelo Ipea. Essa crença está estruturada em duas formas de pensamento recorrentes no país: a transferência da responsabilidade individual e a absoluta dificuldade de conviver com a liberdade do outro. Ambas se manifestam em diversas outras situações do cotidiano nacional, com efeitos nefastos que vão muito além do sexismo.
No caso retratado pela pesquisa, a transferência de responsabilidade se materializa na argumentação de que a culpa é da vítima e não do agressor. Pensamento análogo é aquele do criminoso que atribui à pobreza em que vive os atos ilícitos que comete como se não fosse possível ser pobre e honesto. Não é diferente do político que desvia recursos públicos para fazer caixa 2 eleitoral e culpa "o sistema" por sua má conduta. Nos últimos tempos, aliás, tal raciocínio já foi exibido por um eminente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) mostrando como essa estrutura de pensamento permeia inclusive a elite nacional.
É claro que sempre haverá condições sociais, culturais e políticas mais e menos favoráveis ao delito e ao erro. Aperfeiçoá-las é um dever. Ainda assim, a projeção de responsabilidade representa a morte da justiça, sem a qual não se edifica uma sociedade saudável. No extremo, nunca haverá culpados; só inocentes. Os maus são igualados aos bons.
A pesquisa do Ipea também ajuda a desnudar o mal-estar com que o brasileiro lida com a liberdade do outro e com a diferença. Quem acredita que as mulheres sensuais merecem ser estupradas não aceita esse tipo de conduta e gostaria de enquadrá-las em sua forma de ver o mundo. No fundo, não tolera o direito alheio de ser livre. Defender a violação de quem insiste em ser diferente, portanto, é estuprar a liberdade um dos principais pilares da sociedade contemporânea.
Violências semelhantes a essa são corriqueiras. Aquele que agride o torcedor do time adversário também não admite a diferença e a liberdade de escolha. Para ele, só existe um caminho, uma crença, uma verdade: seu clube. Quem não professa essa "religião" é inimigo e, como tal, merece ser punido. No mundo da internet ocorre algo parecido. Vândalos on-line interditam qualquer debate de ideias e perseguem aqueles que ousam pensar de forma diversa.
Dê sua opinião
O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.