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Fernando Martins

O bom canibalismo – Parte 1

Há exatos 90 anos, São Paulo era epicentro de um terremoto estético que se espalhou pelo país. A Semana de 22 abalou as estruturas da arte nacional – à época fortemente influenciada por temáticas e modelos europeus. Foram apenas três dias de apresentações e mostras, mas os efeitos daquele evento ainda hoje são sentidos. E ao menos uma das concepções que surgiram a partir de lá – a antropofagia cultural – continua atual não só para se pensar a expressão artística brasileira, mas também o próprio país.

O movimento antropofágico só foi conceitualmente definido em 1928, mas a Semana de Arte Moderna já continha seu elemento essencial: a crítica à aceitação passiva de padrões importados. O poeta Oswald de Andrade, autor do manifesto que lançou a proposta, inspirou-se nos índios canibais que existiam à época do Descobrimento. Os nativos antropófagos comiam seus inimigos num ritual para incorporar as qualidades e virtudes da outra tribo. O que a geração modernista simbolicamente propunha era algo semelhante: a "deglutição" crítica de técnicas, ideias e modelos do exterior para reelaborá-los diante da realidade brasileira, aproveitando o que é bom para criar algo novo.

Curiosamente, a antropofagia cultural é o antídoto de inspiração nativista para um traço do caráter nacional que também encontra paralelo na história indígena: o deslumbramento com o que vem de fora. Assim como os tupiniquins do século 16 ficavam fascinados com os objetos e a tecnologia dos navegadores portugueses, parte expressiva dos brasileiros da atualidade dá valor desmedido a tudo o que é importado – de mercadorias a ideias, passando pela arte.

Na direção oposta à do deslumbre e imitação, a antropofagia criou as mais genuínas expressões da identidade brasileira. Ritmos como o samba, a bossa nova, a MPB, o tropicalismo e até mesmo a música erudita (Heitor Villa-Lobos era um dos modernistas de 22) são exemplos da incorporação de técnicas musicais de povos diversos em prol de uma sonoridade original que é admirada fora do país.

O carnaval, folia de origem europeia, se africanizou no Brasil. Profissionalizado, o desfile das escolas de samba tornou-se a mais grandiosa ópera popular que o planeta conhece. O futebol – inventado pelos frios e fleumáticos britânicos – ganhou ginga, vibração e arte nos pés dos brasileiros... ainda que por ora a seleção não faça jus à tradição.

O conceito do canibalismo cultural pode ser usado até mesmo para o país pensar sua organização social e política. Esse será o assunto da coluna da próxima quarta-feira.

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