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Fernando Martins

Quatro séculos do mito que nos imobiliza

Num longínquo 4 de agosto como hoje, há exatos 432 anos, forjou-se um mito português que, herdado por nós, ainda hoje condiciona a forma de pensar de muitos brasileiros e justifica parte do nosso atraso.

Naquele dia de 1578, tropas portuguesas travaram contra mouros a Batalha de Alcácer-Quibir, no território do atual Marrocos. O comandante luso era o próprio rei dom Sebastião, morto em combate. Junto com o monarca, pereceu expressiva parcela da nobreza portuguesa. Sem uma linha sucessória, o trono de Portugal foi incorporado à Espanha dois anos depois, em 1580. E os portugueses ficaram submetidos à coroa castelhana por seis décadas.

Nesse período, floresceu entre os lusos o mito do sebastianismo: a crença de que o rei não estava morto e que voltaria para reivindicar o trono usurpado e, assim, reconduzir Portugal aos anos de glória das grandes descobertas marítimas.

Dom Sebastião passou a personificar a tragédia de um povo e a esperança mística em dias melhores. Enquanto outras nações da Europa dos séculos 16 e 17 rapidamente se modernizavam, preparando-se para a Idade da Razão e a ascensão do capitalismo, os portugueses olhavam para trás e alimentavam o pensamento mágico, apostando seu destino na figura de um salvador da pátria.

O sebastianismo atravessou os séculos. Também cruzou os mares e aportou no Brasil com os portugueses que aqui se estabeleceram. Fincou raízes e floresceu, deixando frutos quatro séculos depois. O misticismo da crença na volta de dom Sebastião nos legou, por exemplo, um certo desconforto em aceitar a modernidade e o que veio junto com ela: os valores republicanos e capitalistas.

E, do mesmo modo, herdamos do sebastianismo português nosso personalismo – a crença de que um grande líder nos guiará rumo ao futuro. Embora esse não seja exatamente um pensamento hegemônico no país, grande parte da população ainda hoje projeta nesse líder suas esperanças no porvir.

Por vezes, nosso dom Sebastião revivido é de fato uma pessoa, um governante. Nesse caso, com a complacência popular, ele passa a personificar o próprio Estado. Torna-se, assim, o "pai do povo", tal qual os antigos monarcas. Daí a propensão de governantes brasileiros em exceder os limites do republicanismo, confundindo o governo com eles próprios e com seus partidos.

Noutras ocasiões, na ausência de uma figura popular para encarnar o mito, a projeção volta-se ao Estado, onde são despejadas as expectativas da nação. Isso explica o entendimento amplamente disseminado de que os governos têm de prover tudo a todos.

O problema é que essa propensão em esperar a "salvação" fora de nós mesmos nos imobiliza como sociedade. Se cremos que um salvador nos dará o que esperamos, deixamos de ser protagonistas de nossas próprias histórias pessoais – o motor do empreendedorismo e do desenvolvimento do mundo moderno.

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