| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

As voltas do calendário caprichosamente jogaram minha crônica para este Finados. E aí vem a dúvida: escrever sobre o quê? Morte? Não! Melhor falar da lembrança dos que partiram. Da saudade. Ela dói. Mas também alegra.

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Eis, então, que me deparo com o dilema: como não me repetir? Há exatos cinco anos, neste mesmo dia, neste mesmo espaço, tratei do assunto. Pensei: uma espiadinha no texto empoeirado não vai fazer mal... Só para inspirar. Só que não. Tudo o que queria dizer já estava ali. E havia um pouco mais que tinha esquecido. O sentimento de perder o tema da semana, contudo, se misturou à satisfação de rever uma crônica que gostei muito de redigir. Mais ou menos como ocorre com a saudade. E assim tive a ideia: repeti-la, sem pudor. Será novidade para quem não leu. Aos demais, chance de se lembrar. Prometo não cometer de novo o sacrilégio dos cronistas. Mas hoje é dia de saudade – essa companheira que sempre vai e volta. Hoje voltou.

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“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!” Fernando Pessoa assim cantou as aventuras e desventuras dos lusitanos ao singrarem os oceanos nas grandes navegações – e a dor dos que ficaram, apartados daqueles que estimavam pela imensidão azul. O poema trata de algo que identifica tão profundamente o povo português e que foi herdado por nós, brasileiros: a saudade – sentimento contraditório expresso numa palavra que só existe no nosso idioma e no galego.

A saudade nos explica. Não é, portanto, para se desprezar e ocultar

Sim! Ao contrário do que muitos pensam, “saudade” é um termo que compartilhamos com nossa língua-irmã da diminuta Galícia (no noroeste da Espanha). Bobagem ficar decepcionado com a perda da ilusão da exclusividade. Saudade – a palavra – não deixa de ser raríssima. E complexa. Foi eleita a sétima mais difícil de ser traduzida dentre todos os vocábulos de todas as línguas. Afinal, exprime num único termo uma sensação tão inexplicável quanto o homem: a alegria de recordar-se de quem se gosta e de sentir ao mesmo tempo a dor e solidão de saber que se está distante da pessoa amada.

Saudade é a doce amargura da lembrança na solidão. É a memória suavemente alegre e intensamente melancólica da perda e separação. É ainda a tênue tristeza no arrebatamento da felicidade da recordação. É, enfim, sentimento simultaneamente dolorido e feliz. Ora mais negativo. Ora mais positivo. Difícil expressar algo tão paradoxal de forma mais sintética. O português e o galego conseguiram tal façanha. É motivo de orgulho e ponto final.

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Há quem diga que a palavra “saudade” tenha sido forjada justamente na era das grandes descobertas lusas para traduzir a desolação e esperança dos que ficavam ao ver os desbravadores partirem. Explicação sedutora, mas improvável. Seria preciso explicar por que, então, os portugueses dividem o termo, mas não a história das navegações, com os galegos. Além disso, há registros anteriores do termo.

Melhor deixar a etimologia da saudade para os filólogos. Se a palavra surgiu ou não no cais da Lisboa quinhentista, pouco importa. As lágrimas saudosas que caíram do lado de lá e as que embarcaram para cá nas caravelas moldaram uma parte fundamental da alma luso-brasileira. Os portugueses, talvez mais amargurados em sua saudade – como sugerem os tristes fados. Nós, brasileiros, quem sabe, mais alegres na nossa melancolia bossa-nova.

Feita esta digressão, chego, enfim, ao ponto deste ensaio: a saudade nos explica. Não é, portanto, para se desprezar e ocultar. Mesmo aquelas que doem muito. E, dentre todas as saudades, a mais lancinante é a que se sente por aqueles que se foram para nunca mais voltar. A que se sente pelos mortos estimados. Essa é a mais dura. Pois é a saudade que ironicamente não se mata. Porque nela reside a certeza da separação insolúvel. Ela nos lega apenas uma sutil lembrança para assoprar a ferida aberta.

Este Finados é, pois, dia de saudade. Dia da dor, de chorar nas franjas do mar tenebroso chamado morte. Mas dia também de nos alegrarmos com a lembrança dos familiares e amigos que embarcaram na nau que ruma ao desconhecido.