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fernando martins

Saudades da paccioca e da flunfa

Para de fazer paciocca, Fernando Rafael! Ouvi muito isso de minha mãe nos meus tempos de guri. Mães adoram chamar os filhos pelos dois nomes quando dão bronca... Mas isso não vem ao caso agora. Quero falar de paciocca (leia “patioca”). Toda criança adora: fazer bagunça com água e um tanto de sujeira ou terra. Mas nem adianta procurar no dicionário. A palavra não está lá. É uma gíria italiana que chegou por aqui na bagagem dos imigrantes. Só é familiar a alguns descendentes.

De qualquer modo, gostava de pacioccar. Hoje, mais crescidinho, admiro a precisão da palavra: resume em letras escassas algo que só pode ser explicado numa expressão. Essa economia da linguagem me fascina. Trocar duas, três ou mais palavras por uma única.

Como não sou um purista, não vejo problema em importar um termo que não encontra correlato no português. Do inglês, aprecio a graciosidade de serendipity – a felicidade que se encontra ao acaso, sem que estejamos esperando. Do alemão, gosto do termo – veja bem, do termo – schadenfreude. É um sentimento feio, mas todos o experimentam de vez em quando. Fazer o quê? É mais ou menos uma inveja com sinal trocado. Se a inveja é a tristeza pela felicidade do outro, schadenfreude é a alegria pela desgraça alheia.

Não vejo problema em importar um termo que não encontra correlato no português

O português também tem suas palavras que expressam muito em pouco espaço. Gosto do som e da brevidade de triscar – tocar de leve; passar rente, por um triz. Um bom amigo do Norte do país me ensinou outro termo do qual gosto, o regionalíssimo malinar – fazer travessuras, traquinagens.

Desde a adolescência, tenho ainda um carinho especial por flunfa. Não está no dicionário. Mas outro bom amigo topou com ela numa crônica do Luis Fernando Verissimo. Achou-a interessante. Compartilhou o significado comigo e, depois, com outro colega. De repente, nós três percebemos o poder mágico que uma palavra pode ter: muita gente do colégio queria saber o que era. Ficamos importantes. Construímos uma espécie de sociedade secreta só para iniciados que girava em torno do... algodãozinho que se desprende da camisa e se acumula no umbigo. Sim, isso é a flunfa. Aquela brincadeira, afinal, era uma tremenda bobagem juvenil. Mas uma bobagem deliciosa, que ajudou um garoto acanhado a se sentir alguém na multidão.

Gosto também, mas tenho certa vergonha de usar, termos que já começam a pegar pó, de tão pouco usados. Ademais – que substitui com galhardia nossa cotidiana expressão “além disso” – é um deles. Mas nada que se compare a algures, alhures e nenhures – respectivamente, “em algum lugar”, “em outro lugar” e “em nenhum lugar”. Eles dormem profundo nas páginas do Aurélio. Até que alguém os acorda por um átimo (fração de segundo) para dar um oi e matar a saudade.

Saudade. Talvez seja a palavra mais bela e rara de nossa língua. Só nós a temos. E exprime em sete letras algo tão contraditório como a própria vida. É a felicidade de se lembrar de algo ou de uma pessoa de quem se gosta e de sentir ao mesmo tempo a dor de saber que se está distante dela. É uma doce amargura. Uma alegria melancólica. Uma tristeza feliz. Como o que sinto quando me lembro dos tempos da flunfa. Ou de quando fazia paciocca.

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