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fernando martins

Ser ou estar, eis a questão nas democracias

Um dos primeiros estranhamentos para quem começa a estudar inglês é em relação ao verbo to be. Como uma ação pode expressar ao mesmo tempo duas ideias distintas: “ser” e “estar”? Como saber com exatidão se algo “é” ou “está”? Mas o incômodo com o ser-estar da língua inglesa talvez ajude a explicar por que britânicos e norte-americanos foram pioneiros da democracia moderna. Vale lembrar que a Inglaterra é o berço da Magna Carta (lei que, em 1215, limitou os poderes dos monarcas) e que os Estados Unidos influenciaram o mundo com suas instituições democráticas.

É impossível pensar fora da linguagem. A estrutura das línguas estabelece os limites do raciocínio. E muitas vezes o direciona. O verbo to be implica que nunca se “é” permanentemente. Nele, sempre há uma ponta de inconstância no “ser”, uma mudança em potencial, expressa na possibilidade de simplesmente “estar”.

A ideia de uma forma de governo imutável, que “é” em absoluto, embute a semente do autoritarismo

Essa forma de expressão e pensamento talvez tenha preparado os falantes de inglês para conceber e aceitar os regimes democráticos modernos antes dos demais povos. Na vida democrática, afinal, nada é para sempre. Governos têm prazo de validade, mudam. O poder político não é de ninguém em particular. Simplesmente está com alguém; é provisório. A própria democracia está sempre aberta a mudanças. E não raras vezes se aperfeiçoa. Mas também corre o risco de retroceder. Dizem, enfim, que a democracia não é um regime acabado, mas em permanente construção. Portanto, nesse sentido, ela não “é”. Tão somente “está”.

Por outro lado, a ideia de uma forma de governo imutável, que “é” em absoluto, embute a semente do autoritarismo. Aquilo que “é” em definitivo não pode ser mudado. Vira dogma. E a história mostra que todos os dogmas têm defensores que estão dispostos a oprimir e a matar para defendê-los.

Não é preciso, contudo, viver sob uma ditadura para sentir os efeitos negativos da concepção de que há um “ser” permanente na política. No país do “você sabe com quem está falando?”, grassa a mentalidade de que há privilégios destinados a determinadas pessoas simplesmente porque elas são mais do que as outras (mais ricas, mais famosas, mais poderosas, mais influentes) – como se tudo isso não fosse circunstancial. Para elas, a democracia é uma ameaça: a de deixar de ser.

Mas é nesse ponto que as democracias impõem um dos seus princípios basilares: a liberdade individual, que também tem muito do espírito do ser-estar da língua inglesa. E isso não tem implicações apenas políticas, mas também existenciais. A liberdade faz com que os papéis sociais tradicionais sejam passíveis de mudança. Pode-se optar por não ser o que a sociedade espera de si. Cada qual pode construir-se. Inventar-se. Mudar. Ser livre é saber que não é preciso ser o mesmo a vida inteira. É saber que simplesmente pode-se estar, e depois não estar mais.

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