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O tempo costuma ser im­­placável. O correr das gerações apaga da memória coletiva a razão pela qual fazemos o que fazemos. Há apenas alguns dias comemorávamos o Natal sem que muitos se lembrassem que aquela não é uma festa do consumo. Uma semana depois, brindamos o réveillon soltando fogos de artifício. Nem sequer nos demos conta de que reavivávamos um ritual antiquíssimo, no qual se procura afastar, com muito barulho, os maus espíritos na chegada do ano-novo.

Agora estamos em janeiro sem saber que, por 31 dias, celebramos Janus (ou Jano) – o antigo deus romano dos portões, das passagens e transições; do passado e do futuro. Representado com duas cabeças opostas – uma olhando para trás e outra para frente –, Janus batizou o primeiro mês do ano, aquele que representa a ponte entre o que passou e o que virá.

Obviamente, ninguém mais faz oferendas ao deus romano. Tampouco deixará de lado sua crença espiritual neste janeiro. Mas o Ocidente, ao manter o calendário dos césares, em certa medida presta homenagem – não mais religiosa, mas simbólica – à tradição da antiga Roma.

E Janus merece ser lembrado pelo que representa. A contradição temporal que ele sintetiza é o presente – esse efêmero instante que se espreme na briga entre a imensidão do passado e a incerteza do futuro. Janus simboliza ainda a indecisão. E outras tensões: entre a barbárie e a civilização; o obscurantismo e o conhecimento; a guer­­ra e a paz. As portas de seu templo em Roma, aliás, eram abertas durante os períodos bélicos e fechadas nos tempos pacíficos. Era para que os conflitos passassem logo e a paz fosse mantida. Porém, conta a tradição que só por duas vezes os portões foram fechados na longa história romana.

Tal como todo deus clássico, Janus é espelho do homem. Afinal, contraditórios também somos todos nós. Guardamos em nossos corações a semente do bem e do mal. Da caridade e da violência que teima em se impor à paz. Guardamos em nós a ignorância e o saber.

Vivemos ora na melancolia de um tempo que não volta mais; ora na expectativa daquilo que pode vir – se é que virá. E, na indecisão entre que mundo escolher, frequentemente fixamos olhares e pensamentos na nossa história pessoal ou no porvir. E imobilizamo-nos, esquecendo de viver o agora. Ou então – como tantos – nos lançamos com fúria ao gozo irresponsável do hoje, como se não tivéssemos um passado a respeitar nem um futuro a construir.

Somos enfim humanos. Mas, se janeiro guarda algum significado mais profundo, que seja então o da passagem, da mudança para melhor. Nada honraria mais nossa herança civilizatória.

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