| Foto: Foto: Daniel Derevecki - Ilustração: Felipe Lima

Cena 1. Janeiro de 2008

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Hedwiges Mizerkowski, de 99 anos, tem um sonho. Ela é de novo a polaquinha que usa papelotes para ondular os cabelos e veste as saias longas, justas e retas dos pós-anos loucos. De braço dado com a mãe, entra triunfal no Café Belas Artes – ponto de encontro de artistas e intelectuais da Curitiba de outrora – para se casar com o pintor italiano Guido Viaro. Desperta apaixonada por ele – 74 anos depois.

Cena 2. Fevereiro de 2008

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Constantino Viaro fica sabendo que uma mulher de quase 100 anos, moradora do Rebouças, afirma ter sido modelo de seu pai, Guido Viaro. Duvida – o pintor estaria hoje com 111 anos, "como é que pode?" Mas faz o tira-teima e bate na porta da desconhecida. Quando vê os olhos azuis cristalinos de Hedwiges, baixa a guarda. "É a polaca."

Cena 3. Março de 2008

Em Foz do Iguaçu, a pesquisadora de arte Maria José Justino diz numa palestra que "A Polaca", tela pintada por Guido Viaro em 1935, é a "Monalisa paranaense". E, num bola ao gol, declara que o retrato – já apontado como um marco do modernismo brasileiro – deve esconder uma história de amor. Esconde.

Guido Viaro era recém-chegado a Curitiba quando viu Hedwiges pela primeira vez. Foi em 1935, num baile da Sociedade Polonesa. Ele tinha 37 anos e nenhum tostão furado. Ela 25, uma curitibana da cepa que falava polonês em casa e não dava confiança para estranhos. Chamavam-na Iadja. No salão, o forasteiro não teve a performance de um Rodolfo Valentino. Mal sabia o dois-pra-lá, dois-pra-cá. Restou-lhe o plano B: mandou o amigo João Dunin Fichinski avisar a moça que queria retratá-la.

Iadja freqüentou o ateliê de Viaro, na Rua XV, por dois meses, sempre blindada contra as bocas-malditas da era paralelepípeda. A saleta abrigava a modelo, o pintor e a "vela" – uma desmancha-prazeres que merecia a solidão da masmorra. Mas nem carecia. O polonês cracoviano dela, o italiano veneziano dele e o português de ambos – mais canhestro do que o dos açorianos –, podiam ser bons para vender pierógui e macarronada. Para passar cantada, jamais. Restava o universal olho no olho e uma fezinha em Santo Antônio, o de Lisboa.

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"Eu gostava mais de flertar do que de namorar", segreda Hedwiges – praticamente uma menina aos 99, linda, lépida e lúcida no posto de musa imortal. Quanto a Viaro, tinha cruzado oceanos para fazer a América, estava "madurão" e queria mais era casar. Enquanto finalizava a tela que batizou com o improvável título de "Conjecturando", passou terebentina nos pincéis e fez o pedido na mais santa felicidade. A resposta – vá entender – teria vindo num castiço alemão do Alto São Francisco, onde Iadja fora criada: "Nein, nein, nein..."

O ruidoso Viaro não fez o gênero una furtiva lacrima. Chorou feito um bambino desmamado. Mamma mia. Fim de caso. A última vez que se viram foi na porta de uma confeitaria – talvez a Pérola. Guido aproveitou a deixa para dar o troco à moda carcamana. Não só se disse refeito, podes crer, como caído de amores por outra, uma mulher alta e clara que, coincidência, passava naquele exato momento, do outro lado da rua.

Talvez fosse Yolanda Stroppa – aquela por quem vendeu uma passagem, só de ida, para o México, comprando tudo em flores para presenteá-la. Casaram-se em 1935, um ano depois das soirées com Iadja. Glória Magadan perde feio. Nos anos que se seguiram, tornou-se o maior pintor da história do Paraná. Morreu em 1971, mas é tão presente no imaginário local que arrisca alguém jurar que cruzou com ele na esquina das Marechais.

Hedwiges se casou com Guerino Macagnan, em 1940. Teve um filho e trabalhou 40 anos na RFFSA. É espírita e descobriu, ainda jovem, o dom de psicografar. Num dos transes, ficou sabendo não ser ela a mulher a quem Guido deveria dar a mão. Acatou. Hoje, apaixonada em sonhos, tem certeza que o destino dos dois vai se cruzar em algum lugar. "Durmo pensando nele."

O cineasta Fernando Severo, que em parceria com Allysson Muritiba, Haruo Oshima e Antônio Júnior filma um documentário sobre Hedwiges Mizerkowski, diz que "ela é capaz de convencer até um ateu de que viverá uma história pós-vida com o pintor". O pragmático Constantino, filho de Yolanda e Viaro, não deixa por menos. "Ih! Vai ser uma confusão."

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Em tempo. Não se tem notícia do retrato de Hedwiges feito em 1934. Pode ter sido destruído pelo próprio Guido. "A Polaca" – tela que fascina tantos estudiosos, foi pintada um ano depois, de memória. Nela, Hedwiges veste a roupa que usava quando conheceu o forasteiro que não sabia dançar.

Golaço da Maria José.

José Carlos Fernandes é jornalista.