| Foto: Albari Rosa / Gazeta do Povo

Fernanda Júlia está resfriada. A encenadora criada aos beijos do sol e aos abraços do mar (da Bahia) desembarcou em Curitiba no mês de abril. Encontrou termômetros amuados, cujos humores lhe renderam crises reumáticas que ninguém merece. Mesmo assim, bateu ponto, seis horas por dia, num endereço que nunca mais sairá do seu caderninho: a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio.

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Segundo a lista telefônica, a “13” fica na Desembargador Clotário Portugal, 274, no velho São Francisco. Esqueçam. O barato é passar o endereço da rua que nasce na porta da sociedade – por ironia dos deuses, a Alameda Princesa Isabel, uma encruzilhada feita de gloriosos paralelepípedos, luz difusa e energia que sobe pela espinha, qual um choque de chuveiro elétrico. Fosse Mário de Andrade curitibano, aposto que pediria que enterrassem ali suas mãos, seu coração ou seu sexo.

Pois é, a sociedade criada pelos “homens de cor” – expressão linda do século 19, hoje incorreta e datada – deu de fascinar uma pá de gente. Jovens em particular, que acorrem à sociedade para sambar, jogar capoeira e sobretudo escarafunchar os infinitos mistérios da “13”. Muitos e muitas querem decifrar a terceira sociedade de negros alforriados fundada no Brasil, semanas depois da Abolição, justo num estado com dificuldade crônica em lidar com seu passado escravagista. Daí haver uma sortida confraria de apaixonados a seus pés – do advogado e historiador diletante Thiago Hoshino, passando pela antropóloga Gessline Giovana Braga, chegando ao antiquarista Edvan Ramos da Silva. Perdoem a lista tríplice, mínima, pois citar todos os entusiastas da sociedade seria estopim para a confusão.

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Fernanda Júlia soube que tantas almas caíam de amores pela “13” e não deixou passar: em hipótese alguma haveria espaço melhor para montar o espetáculo Macumba – uma gira sobre poder, em cartaz no salão nobre da sociedade até 4 de agosto. Ao chegar para a primeira visita, a forasteira cumpriu o ritual: venceu os primeiros lances de degraus, bateu o olho no estandarte puído da SBO, datado de 6 de junho de 1888; viu as teias de aranha que formam uma auréola para a imagem de Nossa Senhora da Luz, num nicho ali em riba. Percebeu as instalações modestas – a anos-luz do fausto do Thalia, da Duque de Caxias ou do Concórdia. A “13” foi castigada por 128 anos de reforma em cima de reforma, mas nada disso importa quando se está debaixo da soberana estrela de cinco pontas, cravada no teto da sociedade, onde, por intuição, todo mundo – com ou sem parafusos a menos – quer ficar plantado, nem que seja por um minuto de paz.

“Macumba”, o espetáculo, transporta o público ao útero de um terreiro de candomblé

O pentagrama desperta a verve dos ocultistas. Pode representar os cinco sentidos, os cinco elementos e o que mais a imaginação apitar. Está liberado. Macumba, o espetáculo, não se atém à estrela mágica do teto, mas lhe faz jus. Oferece uma hora e trinta de audição e olfato, de terra e de fogo, dissolutos em música, dança e jograis que outra coisa não fazem senão transportar o público ao útero de um terreiro de candomblé. É uma liturgia como poucas – e não reconhecê-la como tal, permitam, é não entender do riscado.

A propósito – os atores dirigidos por Fernanda são da Companhia Transitória, formada por Thiago Inácio, Tatiana Dias, Flávia Imirene e Gide Ferreira. Estão ótimos; tanto quanto suas falas, comove a alegria que os une. Parecem voar. Num mundo perfeito, Macumba – uma gira sobre poder seria um espetáculo de repertório e poderíamos vê-lo sempre que houvesse desejo, ao pé da Alameda Princesa Isabel, na Sociedade 13 de Maio, essa nossa casa.

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“Temos de perder o medo da palavra macumba, vencer o estereótipo de feitiçaria, de despacho”, repete Fernanda Júlia, 36 anos, riso farto, posuda, dona de uma voz grave de diva do jazz. Ela foi convidada para criar a peça assim que Thiago Inácio ganhou um edital do Ministério da Cultura para a produção de espetáculos escritos por negros. À época, o recorte “autores negros” causou uma grita geral entre os “machos de Facebook” e congêneres. Mas que nada – ao fim, quando Gide, Flávia, Tatiana e Thiago se despedem do salão, indo para o sumidouro da cortina de chita, resta a certeza de que tinha de ser assim. Foi o que entendeu Fernanda Júlia, ainda que assaltada pela coriza, febre e uma dor nas juntas a lhe implorar o caminho do aeroporto. A criação venceu.

Se a “13” é o endereço de um movimento local, Fernanda Júlia pontifica um movimento nacional – o teatro negro. Ela não escolheu a tarefa, foi escolhida. Era normalista adolescente em Alagoinhas – cidade da qual ouvimos falar ao estudar a Guerra de Canudos – quando uma professora lhe apresentou as coxias. Foi de uma vez por todas. Deu aulas, mas logo escapuliu para fazer jogos cênicos com a molecada. Aos 19 anos se torna diretora. Em 2002, traz a África para seus espetáculos. Em meados da década, encontra sua própria dicção – leva o terreiro de candomblé para a cena, fazendo um bobó gostoso de celebração com encenação. “Faço teatro afrografado, teatro palpável”, diz a estudiosa de Stanislavski, Artaud, Barba e de si mesma – uma encenadora negra em ação, com as bênçãos de Exu, Nanã, Oxalá e Iemanjá; e de Abdias Nascimento, o ativista.

Pelo que consta nos anais da república, chegou lá. Está certo que às vezes treme na base. Em 2013, soltou um sonoro aiaiai ao ver o seu grupo – o Nata (Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas) – integrado ao Fringe, mostra paralela do Festival de Teatro. “Em Curitiba? Que maluquice é essa de ser capital europeia?”, pergunta ainda hoje, pondo a tremer as cortinas da “13”. Como a curadoria era de Wagner Moura, um chapa, topou. Ao desembarcar na cidade, soube que os ingressos para a peça tinham esgotado – não para uma, mas para três sessões. Ao fim, aquela turma multicolorida em roda dela, querendo saber mais. Entre os tietes, Thiago Inácio e Gide Ferreira, que agora dirige. O resto da história dá para adivinhar. Foi um desses encontros marcados com “Curitiba, a negra”. Qualquer dúvida, ponha-se debaixo da estrela da “13” e verá que é tudo verdade.

Fernanda Júlia é um dos expoentes do teatro negro no Brasil.
Encenadora inovou, em meados dos anos 2000, ao trazer a linguagem do candomblé para o centro da cena.
A companhia de Fernanda Júlia, a Nata, de Alagoinhas, Bahia, somou as questões de negritude à estética exuberante das religiões afro.
Em 2013, ao participar do Fringe, mostra paralela do Festival de Teatro, em Curitiba, Fernanda Júlia se surpreendeu com o movimento cultural da cidade em torno da negritude.
Fernanda Júlia não teve dúvidas de que o espaço por excelência para seu espetáculo - Macumba - era a mítica Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, fundada em 1888 e a terceira agremiação de negros brasileira em tempos de Abolição.
Macumba, o espetáculo, teve ensaios abertos em espaços como o Terreiro do Pai Maneco, em Colombo, mas a “13” é de direito a casa do espetáculo.
O pentagrama no teto evoca os muitos mistérios da “13”, espaço, dentre outros, que agremiou os participantes das “irmandades dos homens de cor”.
Companhia Transitória, formada por Tatiana Dias, Gide Ferreira, Flávia Imirene e Thiago Inácio.
Tatiana Dias em ensaio aberto da montagem “Macumba” - o candomblé como elemento cênico. Ao fundo, os músicos, prontos para a gira.
Flávia Imirene em ensaio aberto - atores cantam, dançam, fazem engenhosos jograis. “Tudo se confunde no ritual do candomblé”, diz Fernanda Júlia.
Thiago, Flávia, Tatiana e Gide: grupo curitibano se engaja no movimento de teatro negro que vinga no Brasil.
Gide Ferreira em ensaio aberto - ator é também instrumentista e faz solos de percussão e de flauta transversal na montagem.
Todos os elementos da cultura afro são irmanados na montagem: um ritual em cena.
A Companhia Transitória fez da Sociedade 13 de Maio o seu palco por excelência.