| Foto: Foto: Rodolfo Büher/ Ilustração: Felipe Lima

Há oito anos, o catarinense Noé Querino, 39, faz quase tudo sempre igual. Deita o morto na mesa de alumínio e lhe injeta conservantes na veia. Espera eternos 15 minutos. Mira no relógio. Tem duas horas, não mais. Avia. Aspira líquidos pela virilha e reduz os inchaços. Passa o fio na agulha então. Se foi morte matada, costura as cicatrizes, com nó bem dado na ponta. Se for morte morrida, massageia para que não sobre na face lembrança da hora final, para que a morte lhe pareça leve.

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É da missa a metade. Com pinça, extrai pêlos do nariz e das orelhas de quem jaz. Corta e ajeita os cabelos em coque, se assim manda o formulário. Banha o morto com água a rodo e bons cheiros, "como muitos não tiveram em vida." Pinta-lhes as unhas e, com pós de mulher apaga o esverdeado da tez. "Parecem estar dormindo", é o que diz. É o que dirão, ele sabe.

Tudo faz em quase silêncio, pois é o certo. "Os mortos ou­­vem", avisa. Palavra, só mesmo para pedir desculpas aos que partem – pela sutura que fere, porventura pela mão pesada, por não poder fazer mais nada, pois para a morte não tem remédio. Tempo esgotado.

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Noé já chegou a fazer sete tanatopraxias num dia, um purgatório. Mas não lhe perguntem histórias, nem a fórmula do Ta­­nafluído Arterial PA-14, ou o que lhe faz chorar. Podia falar do eletrocutado, a quem devolveu a cor – um alento para a viúva. Da adolescente atingida por um caminhão, das tarefas a mais difícil – deixou a família sem voz. Do morador de rua que transformou num rei. Podia talvez falar da sua única condição para permanecer no ofício: ja­­mais ter de consertar o corpo de criança, triste que é.

Mas para quê tanta conversa? Noé é do tipo que não leva nada para casa. A mulher e o filho nem especulam o que fez do dia, pois já sabem que o homem vai seguir embelezando os defuntos, que o que faz é missão e que não se fala mais nisso. Amanhã, ele vai cruzar os paralelepípedos do Centro Velho, desviar de algum bebum, de uma vítima do crack, e bater ponto no serviço: "Sou tanatopraxista, trabalho na Funerária São Francisco. Fica na frente do Jokers. Sabe onde é?" E la nave va.

De todas as fábulas do Antigo Testamento, a da Arca de Noé é a mais bela. Que me desculpem o Moisés, a cestinha e o Rio Nilo. Qualquer chuvinha mais forte, falamos do dilúvio, como se tivéssemos ajudado a embarcar um casal de girafas, empurrado rinocerontes pela bunda. E se aparece o arco-íris, mais do que do pote de ouro, ou do movimento LBGT, é de Noé que lembramos. Meus conhecimentos teológicos estão com data vencida, mas se a Bíblia tem mesmo ra­­zão, somos todos filhos de Noé. Puxamos a ele no amor aos bi­­chos, no gosto por viajar e no medo de trovoada.

A propósito, li na Wikipédia que Noé significa "descanso, alívio e conforto". Tem a ver com o Noé Querino, o Noé de Imbituba, SC, o filho do coveiro. Foi criado atrás do cemitério. De piá ajudava o pai nos sepultamentos. Mas como queria ser motorista de ônibus, mandou-se para Curi­­tiba, onde 1.910 coletivos e 2,3 milhões de passageiros eram diversão garantida.

Mas quis o destino que aqui Noé virasse chofer de carro fúnebre. Aceitou a sina com a serenidade de um patriarca. E que se tornasse tanatopraxista. É para poucos. Num dia tem o morto por tiro. Noutro o morto por ma­­chado. Tem sempre o morto por dor. Poucos são os que se vão como um passarinho.

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Diante dele, a gente até se benze e reza. "Deus do céu, que a vida me seja longa. E que Noé me conduza à barca do céu – barbeado, cheiroso, com a cara dormida de domingo de manhã. A calça é jeans. A camisa é marrom. Quero chegar de sapatos e com cabelos na cabeça. Amém."