Se as contas da Urbs estiverem certas, a cada dia 65 mil pessoas passam pela Travessa da Lapa, no Centro de Curitiba, a bordo dos possantes biarticulados da linha Santa Cândida-Capão Raso. A travessa é digna de figurar na revista Mundo Estranho. Corta uma quadra no meio, passa por dentro de um prédio. É virada numa serpente. Não raro, congestiona. Vez ou outra dá comboio, um ônibus atrás do outro numa BR-116 com cinco quarteirões. E a gente só no aperto, olhando para paredes que não confessam nada. Steven Soderbergh devia filmar ali.
De uns meses para cá, convenhamos, a Travessa da Lapa bem que anda mais amigável. Preso dentro do vermelhão, qualquer passageiro que enxergue de longe pode ler um poema escrito no muro, em legras graúdas – “no espaço da noite, projeto meu ser: cavalgo cometas e me transformo em caçador de estrelas”. Nessas horas, acontece o que dizia Walt Whitman, “o dia faz sentido até o dia seguinte”, o que está ótimo. O verso é de autoria de Adélia Maria Woellner, 75 anos, advogada, funcionária aposentada da RFFSA e membro da Academia Paranaense de Letras. Cedeu o verso a pedido da Associação dos Condomínios do Brasil (ACGB), órgão que assina o projeto Poesia em Cores, patrocinado pela Tintas Coral.
Tem outros poetas na iniciativa, andam pelos muros, reparem. Mas Adélia é a madrinha – nada mais justo, por suas muitas milhagens cavalgando cometas e caçando estrelas. Caso você, amigo leitor, não a conheça, permita-me apresentá-la, com mesuras. Fui professor do neto dela, o jornalista Ricardo Brejinski, e lhe disse, mão no ombro: “Ricardo, eu amo a tua vó”. Suspeito que tenha ouvido isso pencas de vezes e compreendo sua recusa em contabilizar a legião de admiradores que lavariam, passariam e carpiriam o mato só para desfrutar a companhia da autora.
Não faria outra coisa. Só em leitores, aposto, Adélia tem uma cidade inteira. Poemas para orar e meditar ultrapassou a cifra de 150 mil exemplares. Um best-seller no país em que fazer circular 5 mil cópias é uma proeza. Dia desses, ao reconhecê-la, uma mulher arrancou um exemplar escangalhado da bolsa e o exibiu como papéis da Bolsa de Valores de Nova York: “A senhora é a autora desse livro, né?” A conversa terminou com o melhor dos abraços – aquele que reservamos para dar a quem escreveu algo que parece feito para nós.
Adélia podia ter se aninhado na turma do Paulo Leminski, mas estava bem entre Pompílias e Tabordas
Para Adélia, a poesia começou sem muitos segredos. Tinha 10 anos de idade, estudava no Instituto de Educação e ficou elétrica ao ver uma colega de classe – Maria da Luz, uma portadora de deficiência – ganhar o centro da sala para declamar um poema de autoria. Fim da aula, puxou conversa. “Maria da Luz, como é que se faz isso aí [poesia]?” A guria deu de ombro, com aquele ar de pouco caso das colegiais, e disparou um quase desaforo: “Fazendo, oras”. Dica baratinha e ligeira, um achado.
Adélia foi para casa e fez versos, sem achar que por causa disso tinha de se mudar para o Templo das Musas. Além do mais, entre escrever poesia e ser poeta, havia um mar, com distâncias demais para uma menina que, pequena, vestia botinas de pequeno jornaleiro e entregava pão com o pai, madrugadinha, sem licença para fricotes. Foi sua escola. Depois, continuou sendo atropelada por trens em velocidade que lhe acudiam. Cedo se apaixonou e largou os estudos. Aos 16, casou-se. Aos 19, despachou o marido, pegou a filha e foi viver sua história – debaixo de todos os olhares inquisidores devotados a uma mulher separada no fim da década de 1950.
Como tinha de se virar, entrou na Rede Ferroviária. Ali aconteceu o que sempre lhe ocorre – alguém surge do nada, lhe aponta um caminho e some na neblina, sem mais. Um colega de trabalho soube que aquela tarefeira, quem diria, arrumava tempo para versos. Encomendou-a ao poeta Apollo Taborda França, que a encaminhou ao Centro Feminino Paranaense de Cultura – no Belvedere, Praça João Cândido. Viu-se lá, de repente, uma jovem no meio de senhoras, entre elas a que a tomaria por uma filha postiça, Helena Kolody. O ambiente era mais severo que o Meio Oeste, mas Adélia foi aceita. Logo veio seu primeiro livro – Balada do amor que se foi: “Uma tremenda dor de cotovelo”, gargalha.
Pela idade e pela cabeça, podia ter se aninhado na turma do Paulo Leminski, mas estava bem entre Pompílias e Tabordas. Assim permanece. Em 1968, livre da aliança de casada que por tempos carregou no dedo, podia dizer que estava na boa. Era poeta, mãe, servidora pública. Tudo acontecia sempre igual até que uma desconhecida, no ponto do ônibus, quis saber se ela não queria voltar a estudar: precisava de uma companhia, à noite, na hora de voltar para casa. Topou. Da misteriosa não sabe. De si, concluiu todos os graus, inclusive a faculdade de Direito, na primeira turma do noturno da UFPR.
Gostava de Direito Penal, sua cadeira como professora, por uns tempos, na PUCPR – mas só lembra de ter tirado um desvalido de trás das grades. Discordo da amada Adélia Maria Woellner. Faz uns bons anos que ela tira do cárcere gentes e gentes. Dá-lhes versos para beber, depois convida a seguir adiante, como ela mesma fez. Quis saber se no fundo a poeta não copia a menina que entregava pão de madrugada. É tudo alimento. Não respondeu – preferiu me oferecer um bolo de laranja, que ela mesma fez. Tava bom.
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