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Arte: Felipe Lima | Foto: Jonathan Campos
Arte: Felipe Lima| Foto: Foto: Jonathan Campos

Em 2007, o pastor luterano Edgar Leschewitz, 44 anos, gaúcho de Panam­­bi, precisou dar um pulinho em Curitiba, "para ver se ia ser aceito por aqui". Explico. Havia uma vaga para ele num dos endereços religiosos mais antigos da cidade – a "Igreja de Cristo", ou Christuskirche – no número 309 da Inácio Lustosa, pertinho do Shopping Müller. O local tem mais de um século de tradição – não se prestaria a qualquer vestiba.

O templo data de 1876, ga­­nhando a feição atual a partir de 1894 e inauguração para valer em 1913. Surgiu numa época em que a capital até podia não se achar o centro do mundo, mas acreditava que estava bem pertinho disso. Era o auge da erva-mate, ocasião em que nossas po­­laquinhas de perna grossa começaram a pôr o nariz na varanda, para alegria de Joaquins, Wolfgangs e Nicolaus. Um foxtrote total.

Com o passar das décadas, a pimposa igrejinha da Inácio foi sendo encoberta pela paisagem urbana, sujeita ao tártaro da His­­tória. Veio sobre ela a fúria das paineiras e da própria vida como ela é, tornando-a um endereço estranho para o povaréu. Sus­­peito que num surto de amnésia esquecemos que a colônia alemã, instalada no Alto São Francisco, nos deu a cara que temos.

A "Igreja de Cristo", discreta como uma diva em retirada, acaba sendo um deleite apenas para os mais atentos. Esses fatalmente se rendem ao charme do portal de ferro, dos jardins à moda germânica, do irresistível ar passadista, bálsamo a nos curar dos malefícios da arquitetura kitsch, nosso triste legado para o século 21.

Não raro, quem gruda na grade do templo tem vontade de entrar. OK. Aqueles murais em alemão, logo à porta, intimidam os pobres monoglotas. Mas dia desses, criei coragem e cruzei o portão.

Não encontrei nenhum pastor sisudo, trajando a toga negra de Lutero, lançando sobre mim palavras azedadas por chucrutes. Tirando o collie Charlie, que tratou o visitante como um pirata do Mar do Norte, me senti na casa das Fridas e das Edas que conheci ao longo da vida, todas donas de riso solto e dadas a generosas porções de cuque.

Conto o que vi. Em cada peça há cadeiras dos Móveis Cimo, soturnos e silenciosos como nossas almas curitibocas. E o anfitrião foi o próprio Edgar, felizmente aceito por seus 70 e poucos fieis. Logo entendi o porquê.

Ali, o paroquiano mais jovem está na casa dos 60 anos e o mais velho, bem, desafia a ciência. A descrição que o pastor faz desse mundo tão particular é tocante. Nos cultos dominicais, em 90% dos casos celebrados em alemão, a musicista Ingrid Serafim toca o pequeno órgão de tubos. "Essa é uma comunidade que canta", diz ele, diante do ícone pintado pelo pastor Karl Frank, em meados do século passado. O que se vê na imagem é de cair sentado: Cristo, meio de lado, como poucas vezes foi retratado, mira a Jerusalém onde será condenado à morte. Tem a ver.

No século 19, os alemães fizeram de Curitiba sua terra dileta, apesar do heimweh – ou "dor da casa", expressão que usam para traduzir a saudade da pátria. Nosotros – bugres, polacos, ju­­deus, portugueses e negros – nos tornamos um pouco como eles: amantes da fotografia, da Serra do Mar, da cerveja caseira, das vinas, do pão de centeio e da carne de onça, essa iguaria dos deuses e dos demônios.

Mas eis que com as agruras da Segunda Guerra, a turbinadíssima comunidade alemã deu uns passos portão adentro. Aqueles tempos bicudos fizeram de uma cultura para fora, um gueto. Os efeitos são sentidos até hoje. A igrejinha das grades de ferro não deixa mentir.

O pior, claro, já passou. Os doutores e juristas que formam a minicomunidade do Edgar não se dedicam a algum culto secreto. Mas a língua os distingue, avisando que vão se entregar aos poucos. É uma pena. Até liguei para o historiador Wilson Maske, um germanófilo de fina-cepa, para perguntar por que estudamos tão pouco o legado dos alemães em Curitiba. Ele foi breve: "Por­­que boa parte dos documentos está na língua deles. Falta quem os entenda".

Gostaria de usar a fala de Mas­­ke para dizer o que sinto. Cá na minha ignorância, suspeito que entenderemos melhor a cidade no dia em que mergulharmos nos mistérios do Alto São Francisco. Não é bolinho. Nas horas passadas com Edgar, ele palestrou sobre Friedrich Bodelschwingh – o teólogo luterano que há mais de 100 anos falou sobre a inclusão dos deficientes. Da luta de Reinhold Niebuhe contra o nazismo. De Dietrich Bonhoeffer, um profeta contra o III Reich.

Na despedida, restou sobre minha cabeça a cúpula à moda da Baviera, testemunha de tudo o que não sabemos. Já com o pé na Inácio, reparo num cartaz preso à pilastra. Diz: "Momento com Deus", às quartas-feiras, das 12 às 13 horas. Entra quem quer. A hora é agora.

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