Em 2007, o pastor luterano Edgar Leschewitz, 44 anos, gaúcho de Panambi, precisou dar um pulinho em Curitiba, "para ver se ia ser aceito por aqui". Explico. Havia uma vaga para ele num dos endereços religiosos mais antigos da cidade a "Igreja de Cristo", ou Christuskirche no número 309 da Inácio Lustosa, pertinho do Shopping Müller. O local tem mais de um século de tradição não se prestaria a qualquer vestiba.
O templo data de 1876, ganhando a feição atual a partir de 1894 e inauguração para valer em 1913. Surgiu numa época em que a capital até podia não se achar o centro do mundo, mas acreditava que estava bem pertinho disso. Era o auge da erva-mate, ocasião em que nossas polaquinhas de perna grossa começaram a pôr o nariz na varanda, para alegria de Joaquins, Wolfgangs e Nicolaus. Um foxtrote total.
Com o passar das décadas, a pimposa igrejinha da Inácio foi sendo encoberta pela paisagem urbana, sujeita ao tártaro da História. Veio sobre ela a fúria das paineiras e da própria vida como ela é, tornando-a um endereço estranho para o povaréu. Suspeito que num surto de amnésia esquecemos que a colônia alemã, instalada no Alto São Francisco, nos deu a cara que temos.
A "Igreja de Cristo", discreta como uma diva em retirada, acaba sendo um deleite apenas para os mais atentos. Esses fatalmente se rendem ao charme do portal de ferro, dos jardins à moda germânica, do irresistível ar passadista, bálsamo a nos curar dos malefícios da arquitetura kitsch, nosso triste legado para o século 21.
Não raro, quem gruda na grade do templo tem vontade de entrar. OK. Aqueles murais em alemão, logo à porta, intimidam os pobres monoglotas. Mas dia desses, criei coragem e cruzei o portão.
Não encontrei nenhum pastor sisudo, trajando a toga negra de Lutero, lançando sobre mim palavras azedadas por chucrutes. Tirando o collie Charlie, que tratou o visitante como um pirata do Mar do Norte, me senti na casa das Fridas e das Edas que conheci ao longo da vida, todas donas de riso solto e dadas a generosas porções de cuque.
Conto o que vi. Em cada peça há cadeiras dos Móveis Cimo, soturnos e silenciosos como nossas almas curitibocas. E o anfitrião foi o próprio Edgar, felizmente aceito por seus 70 e poucos fieis. Logo entendi o porquê.
Ali, o paroquiano mais jovem está na casa dos 60 anos e o mais velho, bem, desafia a ciência. A descrição que o pastor faz desse mundo tão particular é tocante. Nos cultos dominicais, em 90% dos casos celebrados em alemão, a musicista Ingrid Serafim toca o pequeno órgão de tubos. "Essa é uma comunidade que canta", diz ele, diante do ícone pintado pelo pastor Karl Frank, em meados do século passado. O que se vê na imagem é de cair sentado: Cristo, meio de lado, como poucas vezes foi retratado, mira a Jerusalém onde será condenado à morte. Tem a ver.
No século 19, os alemães fizeram de Curitiba sua terra dileta, apesar do heimweh ou "dor da casa", expressão que usam para traduzir a saudade da pátria. Nosotros bugres, polacos, judeus, portugueses e negros nos tornamos um pouco como eles: amantes da fotografia, da Serra do Mar, da cerveja caseira, das vinas, do pão de centeio e da carne de onça, essa iguaria dos deuses e dos demônios.
Mas eis que com as agruras da Segunda Guerra, a turbinadíssima comunidade alemã deu uns passos portão adentro. Aqueles tempos bicudos fizeram de uma cultura para fora, um gueto. Os efeitos são sentidos até hoje. A igrejinha das grades de ferro não deixa mentir.
O pior, claro, já passou. Os doutores e juristas que formam a minicomunidade do Edgar não se dedicam a algum culto secreto. Mas a língua os distingue, avisando que vão se entregar aos poucos. É uma pena. Até liguei para o historiador Wilson Maske, um germanófilo de fina-cepa, para perguntar por que estudamos tão pouco o legado dos alemães em Curitiba. Ele foi breve: "Porque boa parte dos documentos está na língua deles. Falta quem os entenda".
Gostaria de usar a fala de Maske para dizer o que sinto. Cá na minha ignorância, suspeito que entenderemos melhor a cidade no dia em que mergulharmos nos mistérios do Alto São Francisco. Não é bolinho. Nas horas passadas com Edgar, ele palestrou sobre Friedrich Bodelschwingh o teólogo luterano que há mais de 100 anos falou sobre a inclusão dos deficientes. Da luta de Reinhold Niebuhe contra o nazismo. De Dietrich Bonhoeffer, um profeta contra o III Reich.
Na despedida, restou sobre minha cabeça a cúpula à moda da Baviera, testemunha de tudo o que não sabemos. Já com o pé na Inácio, reparo num cartaz preso à pilastra. Diz: "Momento com Deus", às quartas-feiras, das 12 às 13 horas. Entra quem quer. A hora é agora.