Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo. Arte: Felipe Lima| Foto:

Sabe aquela história da guria que fugiu com o circo? Pois não é lenda. A sulista Regina Vogue, 66, tinha 16 anos quando arrumou a trouxa e ganhou a estrada no encalço de malabaristas, acrobatas e palhaços. Se lhe perguntam por que da sangria, responde pronto: "eu queria ser livre, só isso".O desejo de cair no mundo lhe veio de tanto folhear revistas O Cruzeiro e de escutar o Repórter Esso, em companhia do avô. Seria perfeito, não fosse Mariazinha, como a chamavam, um personagem de Monteiro Lobato. Tomava chá de sumiço e se entregava, sem hora, às matinês da Rádio Farroupilha, em Porto Alegre. De nada lhe valia levar sovas e tabefes. "Fui a maluca dos anos dourados", resume.

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Outra diversão era se deliciar em roda das tias alcoviteiras, ouvindo-as falar de moças desonradas e decaídas, nessa ordem, com as quais nenhum homem aceitaria se casar. "Uma judiaria", concordavam. Exceto a pequena, admiradora confessa das mal faladas. Ainda seria uma delas.

A oportunidade lhe veio no dia em que baixaram as lonas de um circo que passava pelas margens do Guaíba. Lá se foi a pequena em companhia dos "peludos", como se refere, pândega, aos homenzarrões com muque para montar picadeiros, com os quais passou a dividir a carroceria dos caminhões.

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As lembranças de Regina e o circo são o que há. Ela cuspiu fogo, ficou pendurada pelos cabelos, fez chanchadas e virou a bela na mira do atirador de facas. Mas foi domando touros – isso mesmo – que deixou de ser, digamos, mais uma desmiolada caída de amores pelo contorcionista. Tinha 19 anos e pouco mais de 40 quilos quando se agarrou à cacunda de um touro bravo, recebendo uma sonora salva de palmas. Era o que procurava.

"Eu o peguei na unha", orgulha-se, pose de diva, sobre o episódio que definiu seu destino. Se Regina fujona até então não sabia o que era medo, depois da toureada toda a companhia passou a ter certeza de sua bravura. Ganhou respeito – e não ficou mal falada, como previam as tias.

A vida mambembe só teve parada no início da década de 1980. Com dois filhos na barra da saia, entendeu que precisava, enfim, uma caixa dos Correios. Escolheu Curitiba – onde, logo percebeu, tão fácil não faria amigos nem ganharia aplausos. A cidade lhe foi tão árida que Regina chegou a ler mão – feito cigana – na Praça Tiradentes, para ganhar uns trocos. Um de seus primeiros empregos nos palcos não foi numa peça do Oracy Gemba ou do Ademar Guerra, mas como faxineira no Teatro José Maria Santos. A turma dos pinheirais ficou pé atrás com a forasteira que tinha a brejeirice de uma Dercy Gonçalves, mas queria ser Fernanda Montenegro. Ela só conseguiu estrear mesmo quando seu filho Maurício – no elenco de uma montagem para crianças – ofereceu a mãe para substituir uma atriz que tinha faltado.

Aos poucos, Regina – em parceria com Isidoro Diniz – se tornou sinônimo de espetáculo infantojuvenil. A crítica até podia não se sentar à primeira fileira para prestigiá-la, mas não raro artistas de naipe – atrás de um bico para pagar as contas – encarnavam personagem dos contos de fadas na trupe da senhora Vogue.

A fama de mulher bondosa, aliás, correu pelas canaletas. Além de não deixar colegas de classe em apuros, socorre vizinhos desamparados e, aonde vai, é seguida por cachorros que lhe abanam o rabo: só Deus e o pet da esquina sabem quanto de ração ela distribui por aí. Outra de suas facetas é a "polenta da Regina", servida a amigos, um agrado gastronômico de fazer inveja ao X-Montanha. "A do circo era seca. Essa tem queijo. É redentora", esbalda-se.

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Em tempo. Os parentes de Regina a reconheceram como artista apenas em 1989, quando ela desembarcou em Porto Alegre, ao lado de Paulo Autran, no elenco de A vida de Galileu. Em Curitiba, sentiu-se em casa, pra valer, só nos idos de 2004, ano em que o empresário Miguel Krigsner, seu espectador anônimo, batizou o teatro do Shopping Estação com o nome da atriz. Foi o grande dia da Mariazinha que fugiu com o circo, aquela.