Em 18 de abril de 1939, o dentista catarinense João Mariano dos Santos Júnior e a dona de casa Dinorá Moelman tiveram filhas gêmeas e as batizaram de Marta e Maria, igualzinho às irmãs do Lázaro, o da Bíblia. Se bem entendi o que dizem as escrituras, enquanto Maria fazia o tipo "toda ouvidos", deixando o batente para depois, Marta trabalhava feito uma voluntária nos campos de refugiados de Darfur. De modo que quando se quer dizer que uma mulher é trabalhadeira o certo seria falar "fulana é uma Marta" e não "fulana é uma Maria".
O que se vai ler a seguir é a história de Marta, a filha do doutor, uma verdadeira Maria.
As gêmeas de Camboriú fizeram jus ao nome de pia. Maria, da qual sei quase nada, era tal e qual sua xará de Bethânia, na Terra Santa. Hoje vive pertinho de Nosso Senhor. Marta, aos 71 anos, não tem sossego. Volta do serviço às duas da madrugada e às 7 da matina está de pé, para regar a horta e dar de comer ao cachorro Duque e aos gatos Fred e Tammy. Reza o mantra: "Vou trabalhar até quando meus dois patrões deixarem, o daqui da Terra e o lá de cima".
A mulher tem seus motivos. Eis o caso: quando jovem, durante uma viagem a Papanduva, em Santa Catarina, a guria bem nascida conheceu o pedreiro com nome de personagem de Mario Vargas Llosa: Matias Matoso, a seu dispor. Casou-se com ele, deixando para trás os regalos da casa paterna e tendo pela frente a despensa vazia e o choro dos filhos.
"Escolheu marido, agora aguente" ouviu. Mas aquilo não era vida. Um dia, sem pedir licença ao seu Matoso, foi à luta. Primeiro, tentou ser varredora de rua da extinta Terpa Lipater. Em segundo, cozinheira num restaurante da André de Barros. Nada. Depois bateu na porta da Viação Nossa Senhora do Carmo, candidatando-se à vaga de cobradora de ônibus. "Vocês não vão se arrepender", profetizou ao Maia, aquele que lhe estendeu a mão.
Bom, lá se vão 35 anos de lida, 30 a bordo da Linha Itamaraty, um percurso que dura 20 minutos não mais. Parte do Terminal Hauer, passa pela ruas Waldemar Kost, Paulo Setúbal, Evaristo da Veiga, Antônio Rebelatto, vira uma via "de nome engraçado", seguindo pela Waldemar Loureiro até a João Kasdorf.
No turno da noite, o Itamaraty é o palácio onde reina a senhorinha miúda 65 quilos desde os tempos de Camboriú/Papanduva e cabeça branca que nunca conheceu pintura. É a Marta, a seu dispor. Arrisca ser mais conhecida pelas bandas do Xaxim do que o ex-vereador João Derosso. Não é pouco: o Xaxim é o sexto maior bairro de Curitiba, com 60 mil habitantes e crescimento de 3,2% ao ano espicha mais do que a Água Verde e o Portão.
Dia desses, um dos 14 netos da cobradora recebeu a seguinte mensagem no Orkut: "Não creio, você é parente daquela senhora do Itamaraty, a velhinha nota 10?". Não causa espanto. A mulher chama Deus e o mundo de "meu anjo", é a loucura da petizada e o ombro amigo das Marias desencantadas, que no chacoalhar do coletivo lamentam seus próprios Matias e Matosos.
Mal sabem da Marta, que pouco se queixa. Não é da sua natureza. Há uma década tenta terminar a casa de oito peças em que mora com a filha Loisemery e uns netos. Empenhou nas paredes e nas lajes a aposentadoria, os R$ 700 por mês, o anuênio que recebe na firma. Para terminar a obra, "Marta, Marta", vai para a lida.
Mês folga sábado, mês folga domingo.Nos momentos de barde, abre uma cervejinha, escuta João Mineiro e Marciano e se dá o direito de ver a vida passar na Rua Teodomiro Furtado, seu endereço. É seu dia de Maria que tédio. Cá entre nós, ela gosta mesmo é de ser Marta. A bordo da viação, tem notícias da Nair. Se houver jogo de futebol, sente frio na barriga. E se der assalto no lotação já passou por 11 não se afoba. O garoto torto há de lhe chamar pelo nome: "Me desculpe, dona Marta mas me passe a grana..."
Eis um privilégio de poucos.
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