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José Carlos Fernandes

A obra em negro de João de Freitas

 | Foto: Hugo Harada – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Hugo Harada – Arte: Felipe Lima)

Em 24 de agosto de 1954, ao ouvir Heron Domingues – o Repórter Esso – anunciar a morte de Getúlio Vargas, o guarda-civil José de Freitas e sua mulher, Francisca da Silva, choraram o choro dos órfãos. Os Freitas eram moradores da Rua Alagoas, na Vila Guaíra, então um arrabalde da capital paranaense. Tinham no presidente o "pai dos pobres", qual milhares de brasileiros. Aquele velório lhes dizia respeito.

Com modos de quem faria luto oficial de uma eternidade e mais um dia, o guarda José desligou o aparelho de válvulas – comprado em alguma prestação – e o colocou num alto, para desespero dos filhos miúdos, João Carlos e Ney José. Foi preciso a peleja da mãe para que o toque de silêncio não fosse imposto de uma vez por todas. O mais divertido é que, sem saber, Francisca salvou um capítulo da história do samba em terras paranaenses. Explico.

Restabelecido o direito sagrado à música, os guris voltaram a ouvir os programas da Rádio Nacional, o que lhes fez um bem danado. Cresceram cidadãos honrados. E com ritmo. Um deles, o João, aliás, não desligou o rádio até hoje. Tem 63 anos, vida ganha como advogado, é espírita, comunista e ativista, mas, se lhe perguntam o que faz, responde pronto que é "sambista acima de tudo", por mais absurdo que isso possa parecer aos nossos ouvidos eruditos.

Não se trata da única estranheza. À revelia de sua devoção às batucadas – ele é capaz de descrever com minúcia as antigas rodas no bar Caneco de Sangue, na Rua João Negrão –, João nunca pôs os pés na avenida. Chegou perto, quando moço, num teste na bateria da Colorado, sua escola do coração. Lanhou a mão no pandeiro, como lhe pediram, sem sucesso. Décadas depois, vingou-se da desfeita ao escrever o necessário Colorado, a primeira escola de samba de Curitiba, lançado em 2009.

Suspeito que o livro traga 1% do que João sabe sobre o samba no Paraná – e sobre os negros em Curitiba. Ele se esquiva. Diz-se escriba modesto. Lista uma penca de estudiosos de brilho, aptos a desmontar as teses "Paraná Omo Total" defendidas por nossos Martins – do Romário ao Wilson. Mas logo se entrega, disparando uma saraivada de pequenas narrativas de negritude que a alvíssima Curitiba desconhece.

Vamos às mais brincantes, que hoje é feriado da República, né. Quando menino, João era vizinho dos negros Geraldino e Otacília dos Santos, que, além de animar procissões de São Cristóvão – padroeiro da Vila Guaíra –, promoviam antológicas rodas de samba naquelas baixadas. Na falta de instrumentos, a sonzeira era "da lata" – as latas gigantes de margarina usadas outrora. Foi com uma delas que Otacílio lhe fez a primeira cuíca, plantando-lhe o desejo de integrar uma bateria.

A certeza de que seu destino estava traçado veio no dia em que viu desembarcar de um caminhão, no campo do Triunfo, lá mesmo na vila, o retinto time "Café do Paraná". Era formado em boa parte por funcionários da Rede Ferroviária Federal, a RFFSA. Creiam, João sabe a escalação dos negões, do Caracu ao Calixto, passando pelo Dico "da frigideira" e pelo Moacir "da cuíca" – um malandro de corpo todo navalhado. Sim, tanto tempo depois, consegue dizer o que cada craque tocava depois da partida. De detalhe em detalhe, nos leva para os campinhos de peladas, botecos, fundos de quintal e demais espaços invisíveis onde os negros da capital fizeram seus quilombos.

À época, o guarda José nunca se opôs aos filhos. Podiam sambar, desde que virassem estudados. Para tanto, vendia os ovos das galinhas que criava e investia nos cadernos. Conseguiu o tento. A descrição que João faz do dia em que conseguiu sua carteirinha na Biblioteca Pública é tão cheia de ginga quanto a dos sambaços que frequentou.

A casa em que vive – agora em Pinhais – resume esse enredo. Na parte de cima, guarda sua coleção com mais de 5 mil livros. Foi iniciada nos tempos de passeata e cassetete na cacunda. De tão boa, deveria ser à prova de olho gordo. Na parte de baixo, criou um terreiro para o samba. Ali recebe músicos, pesquisadores e tal. É no meio dos batuques que segue falando dos negros do Campo dos Boiadeiros – hoje Vila Lindoia. Dos feitos de ídolos como o jogador de futebol Ismael Cordeiro, o Maé da Cuíca. Lista longa. João tem uma biblioteca inteira na ponta da língua – é sua "obra em negro", para bons entendedores.

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