Em 24 de agosto de 1954, ao ouvir Heron Domingues o Repórter Esso anunciar a morte de Getúlio Vargas, o guarda-civil José de Freitas e sua mulher, Francisca da Silva, choraram o choro dos órfãos. Os Freitas eram moradores da Rua Alagoas, na Vila Guaíra, então um arrabalde da capital paranaense. Tinham no presidente o "pai dos pobres", qual milhares de brasileiros. Aquele velório lhes dizia respeito.
Com modos de quem faria luto oficial de uma eternidade e mais um dia, o guarda José desligou o aparelho de válvulas comprado em alguma prestação e o colocou num alto, para desespero dos filhos miúdos, João Carlos e Ney José. Foi preciso a peleja da mãe para que o toque de silêncio não fosse imposto de uma vez por todas. O mais divertido é que, sem saber, Francisca salvou um capítulo da história do samba em terras paranaenses. Explico.
Restabelecido o direito sagrado à música, os guris voltaram a ouvir os programas da Rádio Nacional, o que lhes fez um bem danado. Cresceram cidadãos honrados. E com ritmo. Um deles, o João, aliás, não desligou o rádio até hoje. Tem 63 anos, vida ganha como advogado, é espírita, comunista e ativista, mas, se lhe perguntam o que faz, responde pronto que é "sambista acima de tudo", por mais absurdo que isso possa parecer aos nossos ouvidos eruditos.
Não se trata da única estranheza. À revelia de sua devoção às batucadas ele é capaz de descrever com minúcia as antigas rodas no bar Caneco de Sangue, na Rua João Negrão , João nunca pôs os pés na avenida. Chegou perto, quando moço, num teste na bateria da Colorado, sua escola do coração. Lanhou a mão no pandeiro, como lhe pediram, sem sucesso. Décadas depois, vingou-se da desfeita ao escrever o necessário Colorado, a primeira escola de samba de Curitiba, lançado em 2009.
Suspeito que o livro traga 1% do que João sabe sobre o samba no Paraná e sobre os negros em Curitiba. Ele se esquiva. Diz-se escriba modesto. Lista uma penca de estudiosos de brilho, aptos a desmontar as teses "Paraná Omo Total" defendidas por nossos Martins do Romário ao Wilson. Mas logo se entrega, disparando uma saraivada de pequenas narrativas de negritude que a alvíssima Curitiba desconhece.
Vamos às mais brincantes, que hoje é feriado da República, né. Quando menino, João era vizinho dos negros Geraldino e Otacília dos Santos, que, além de animar procissões de São Cristóvão padroeiro da Vila Guaíra , promoviam antológicas rodas de samba naquelas baixadas. Na falta de instrumentos, a sonzeira era "da lata" as latas gigantes de margarina usadas outrora. Foi com uma delas que Otacílio lhe fez a primeira cuíca, plantando-lhe o desejo de integrar uma bateria.
A certeza de que seu destino estava traçado veio no dia em que viu desembarcar de um caminhão, no campo do Triunfo, lá mesmo na vila, o retinto time "Café do Paraná". Era formado em boa parte por funcionários da Rede Ferroviária Federal, a RFFSA. Creiam, João sabe a escalação dos negões, do Caracu ao Calixto, passando pelo Dico "da frigideira" e pelo Moacir "da cuíca" um malandro de corpo todo navalhado. Sim, tanto tempo depois, consegue dizer o que cada craque tocava depois da partida. De detalhe em detalhe, nos leva para os campinhos de peladas, botecos, fundos de quintal e demais espaços invisíveis onde os negros da capital fizeram seus quilombos.
À época, o guarda José nunca se opôs aos filhos. Podiam sambar, desde que virassem estudados. Para tanto, vendia os ovos das galinhas que criava e investia nos cadernos. Conseguiu o tento. A descrição que João faz do dia em que conseguiu sua carteirinha na Biblioteca Pública é tão cheia de ginga quanto a dos sambaços que frequentou.
A casa em que vive agora em Pinhais resume esse enredo. Na parte de cima, guarda sua coleção com mais de 5 mil livros. Foi iniciada nos tempos de passeata e cassetete na cacunda. De tão boa, deveria ser à prova de olho gordo. Na parte de baixo, criou um terreiro para o samba. Ali recebe músicos, pesquisadores e tal. É no meio dos batuques que segue falando dos negros do Campo dos Boiadeiros hoje Vila Lindoia. Dos feitos de ídolos como o jogador de futebol Ismael Cordeiro, o Maé da Cuíca. Lista longa. João tem uma biblioteca inteira na ponta da língua é sua "obra em negro", para bons entendedores.