“Uau, você é da Síria... Que legal”, costumam repetir os brasileiros para o advogado, jornalista e agora padeiro Amr Houdaifeh (diz-se “Amer”), 26 anos, assim que ele se apresenta. “Legal? Será que eu sou da Lua?”, pergunta-se, na tentativa de entender qual é o barato de vir de um lugar em guerra civil há quase sete anos, saldo aproximado de 250 mil mortos e 2 milhões de refugiados – Amr entre eles. Podia achar ruim, uma tremenda falta de informação, mas prefere achar graça, com folga a melhor das políticas pacifistas. No mais, está caído de amores pelo país que lhe deu visto de entrada depois que EUA, Europa e umas tantas nações árabes o bombardearam com um sonoro “não”.
“Digo que foi o Brasil que me escolheu – e não o contrário. Estava tão desesperado que iria para qualquer lugar”, brinca, sem deixar de justificar o duplo sentido da frase. “Meu medo do Brasil era culpa de Hollywood”, emenda, a propósito dos filmes que pintam a América do Sul como um reduto de narcotraficantes armados até os dentes, e com a barba por fazer. Tomou alguns cuidados. Pesquisou e traçou um destino em que estivesse a salvo de bombas já antes do café da manhã. Identificou Curitiba, cidade que lhe parecia diferente do que imaginava ser todo o resto. Não a elegeu sozinho. Há hoje estimados 500 sírios residentes na terra dos pinheirais.
Em comum, todos lambem as feridas da guerra, viram-se com o aluguel no fim do mês e, claro, vivem às turras com a língua portuguesa, essa linda tirana. De nada adianta consolá-los dizendo que o árabe é muito mais difícil, que tem muito mais sons e palavras, que os sírios são estudados, o que tornaria o português uma barbada para eles. “Não consigo dizer ‘a porta’. Para mim é ‘o porta’. Eu erro – ‘o máquina’, ‘o foto’”, exalta-se, ao listar seus maus bofes com os masculinos e femininos, para citar um dos capítulos de seu MMA com a nossa gramática.
E olhem que se trata de um garoto rodado. Nos primeiros anos do conflito na Síria, editava um jornal clandestino, fonte inesgotável de perigos de degola. Sem trégua, partiu em 2012 para uma viagem de seis meses por Iraque, Irã, Paquistão, Afeganistão, Índia, Nepal, Vietnã, Camboja, Mongólia, China, Rússia e Armênia. Juntava material para um livro, mas nada que o protegesse de um ultimato: de volta para casa, soube ter poucos dias para escafeder. Obedeceu sem cerimônia. “Eu tinha 22, 23 anos e nenhuma garantia de vida”, resume o refugiado, que em Curitiba vive de fazer pão sírio para fora. “Inclusive sem glúten.”
Em se tratando de refugiados, ensinar uma língua é dar um novo passaporte a quem tudo perdeu
Cá entre nós, Amr reclama do idioma, mas manda bem. Esbanja bom vocabulário e, o mais surpreendente, arrisca piadas e blagues, com folga a melhor receita para superar barreiras linguísticas. É, em suma, um bom papo – sob medida para uma conversa no ônibus, na praça e no portão. Mas também pode ser profundo e mordaz. Semana passada foi o caso. Diante de pouco mais de 50 pessoas reunidas no Paço Municipal, roubou a cena durante a terceira edição do ciclo de leituras “Literatura de Refúgio”, promovido pela jornalista Carla Cursino e pelo pesquisador da área de Letras da UFPR João Arthur Pugsley Grahl – entre outros agentes. Foi bonito de ver.
O tema do encontro era poesia árabe em geral, a da Síria em particular. Versos de Azis Nesin, Adonis, Mahmoud Darwish, Samih Al-Qasim, Nizar Qabbani, Nazik Al-Malaika e Maran Al-Masrin foram lidos em árabe – por ele, o homem do nome com três letras, Amr. Causaram impressão a voz grave, abafada e embargada do viajante, dessa vez pouco aberto às piadas de salão. Ler na língua mãe é uma liturgia, afinal.
“Desculpem [pausa]. Nunca imaginei que um dia estaria aqui, tão longe de casa, lendo poetas árabes e falando do que acontece no meu país.” Após a oitiva da qual não se entendia lhufas, mas isso é de menos, ouviu-se a tradução dos textos – a cargo de estudantes da UFPR. O bilinguismo deu sentido àquela noite, perdoem, das arábias. Os sírios presentes estavam em flagrante estado de melancolia, loucos para roçar a língua na língua de Adonis; e os brasileiros, em estado de descoberta. A realidade absurda do Oriente, dessa vez, não veio pelo filtro do noticiário.
Nem é preciso dizer que os poetas reverenciados naquela noite quase nunca chegam a nós. Nem nós a eles. Carla e Amr os apresentaram com requintes de sedução. Azis Nesin, por exemplo, passou metade de sua vida na prisão. Trata da quietude e da mudez impostas em zona de contenda. Qasim pede que seus textos sejam lidos em voz alta, qual um protesto contra quem joga bombas em sonhos infantis. É dele a frase “pois em minhas colinas e vales a paz foi assassinada”. A iraquiana Nazik, autora de versos livres, é mestra em traduzir as ausências de quem pisa em campo minado: “Se ao menos pudéssemos morrer como as outras pessoas...”, escreve, sem precisar dizer mais. Maran Al-Masrin, síria exilada na França, hoje abre mão de temas intimistas para tratar, sem meios tons, de um país condenado à morte. Depois de ouvir esses poetas, não tem como fazer de conta que o que acontece no Oriente Médio diz respeito somente a eles.
É bom lembrar que a experiência de “Literatura de Refúgio” nasce de um verdadeiro movimento cultural nos corredores da UFPR. Em 2013, surgiu o projeto de extensão Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), com o objetivo de ensinar português para haitianos, sírios, congoleses e quem mais. Em pouco mais de três anos, 1,1 mil pessoas passaram pelos cursos – comandados por 30 profissionais da universidade, entre estudantes e professores da casa. Amr estudou lá.
Não é só o balanço numérico que impressiona, mas a maneira como é realizada. A turma das Letras ultrapassa os ditames da didática e da prática de ensino convencional, desdenha de alguns manuais, e mostra que literatura não é o tema da aula, um ponto no livro, um bônus para aliviar o peso da matemática. Não é ilustração – “é a chave”, resume Carla. Todo o resto vem por acréscimo. “Quem são eles? É o que a gente se pergunta o tempo todo.” Dar aulas ali é estar em núpcias com o estrangeiro.
Em se tratando de refugiados, ensinar uma língua é dar um novo passaporte a quem tudo perdeu. “Como é que se diz em português?” A pergunta tão recorrente não deixa de ser uma despedida de um outro modo de dizer, totalmente deles, extensão do corpo de cada um, como bem ensinaram filósofos da linguagem e pensadores – de Wittgenstein a Bachelard, por aí afora. Trocar de língua deve ser mais sofrido que trocar de pele. Mas pode doer bem menos quando um conto, uma crônica, um poema ou um romance dos países da diáspora servem de desculpa para que os refugiados entoem sua voz. Nessas horas, “são todos Amr”, às voltas com seus Adonis e Qabbanis.
E pensar em todos os atentados dos tecnocratas à literatura e às humanidades em geral, vistas como penduricalhos pelos caretas. A resposta bem dada a essa turma é que, num dos momentos mais dramáticos da história contemporânea, são as Letras a nos ensinar a primeira das virtudes humanitárias – a hospitalidade. Sem ela não há pão, nem há sossego.
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