O comediante Fagner Zadra é muito jovem para escrever uma autobiografia. Tem apenas 32 anos. Mas, se o fizesse, não ia lhe faltar assunto. Assinaria um best-seller, do naipe de Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva – lido faz pouco tempo. A carreira, por exemplo, começou nos idos do jardim de infância, quando lhe deram um papel secundário no presépio da escola. Fazia um pastor e sua tarefa era entrar em cena pilotando uma ovelha – espécie abundante na pequena Planalto, noroeste do Rio Grande do Sul, sua terra natal. Pois soltou o bicho na plateia, num atentado à paz da manjedoura. Um sarro de videocassetada. Tudo de caso pensado.
Crescidinho – gagueira vencida –, não era a rigor um piá de impecáveis meias brancas e cabelos de milho domados a cuspe. Parte da culpa se deve ao nome – a mãe de Zadra adorava a música Borbulhas de amor, sucesso do cearense Fagner. A história rendia zoeiras. Acabou que fez carreira na “turma do fundão”, ponto de vista privilegiado para exercitar o que seria sua maior habilidade – a perícia ao captar cenas, comportamentos e tipos bizarros. Não é o cara que conta a melhor piada, é o sujeito que percebe mais rápido as atmosferas – e se alguém pôs o dedo no nariz. Depois solta a ovelha e rouba a cena. É como se tivesse um sensor interno, que lhe aumenta a capacidade de gerar eletricidade entre as pessoas. Mas para que teoria, se a melhor definição para Fagner Zadra é só uma – “ele é um palhaço”.
O álbum de fotografias serve de prova. Aparece vestidinho, aqui e ali, um Piolin em bombachas. Chegou a se graduar em duas instituições – a Escola do Ator Cômico e a Companhia dos Palhaços. Com o tempo, o nariz, a pintura, as calças largas deram de lhe atacar os nervos. Já a alma circense se manteve invicta. Por sorte.
Há exatos dois anos, ao ser atingido no pescoço por uma bola de isopor de 30 quilos (“do tamanho de um carro”), presa ao teto, durante a abertura do Festival de Curitiba, descobriu que permanecia em forma para o picadeiro. O acidente o deixou tetraplégico. Ele sabia. Mas bastava ver passar uma enfermeira no corredor para dizer, com ar de bezerro desamparado: “Você pode alcançar meus chinelos, por favor”. Elas entravam em pânico. Era piada.
Depois de provar da penúria dos declives do meio-fio, verdadeiras rampas rumo ao inferno, Zadra entendeu por que os deficientes não saem de casa, o que os torna invisíveis
Conhecer a rotina de Fagner Zadra deixa a gente, me permitam, sem jeito. Seu apartamento, no Centro, virou uma clínica, com barras, ferros e colchonetes por todos os cômodos. A rotina ali começa às sete da matina – mesmo nessa temporada de festival, quando fez 12 apresentações, a maioria com seu grupo, o Tesão Piá. São quatro horas seguidas de fisioterapia. A partir da semana que vem serão oito, dobrando o plano de ação de Fagner, o incansável. Ele desafia os diagnósticos médicos e a si mesmo, pois tem dia em que quer enfiar a cabeça embaixo do cobertor. A turma da retaguarda sai das coxias para reanimá-lo– enfermeiros, parentes, amigos. Uma de suas máximas é que, mesmo que não consiga, sonha ser apontado, velhinho, como “o cara que nunca desistiu de andar”. Mas não lhe peçam para fazer drama – a essa declaração engata a frase “então, nos meus tempos de bípede...” (risos)
Poucas coisas lhe roubam o bom humor – as calçadas de Curitiba entre elas. Chegou a falar com o prefeito, assessores e quem mais. Depois de provar da penúria dos declives do meio-fio, verdadeiras rampas rumo ao inferno, entendeu por que os deficientes não saem de casa, o que os torna invisíveis. Recebe e-mails às pencas, pedindo que os represente, em nome da fama. Tempos atrás, caiu da cadeira de rodas, entregue à malvadeza dos paralelepípedos. Não lhe faltou pronto socorro. A contar pelo teste da rua feito pela Gazeta do Povo, não passa dez minutos sem um pedido de selfie, beijos, abraços emocionados, seguidos do bordão “força guri”. Na hora da foto, Zadra repete um de seus artifícios: neutraliza a pinta de galã com um sorriso de monstrinho de desenho animado. Todo mundo se desarma. A essa altura, seu raio de atração se estendeu por uma quadra, rendendo o gari e o sujeito de terno.
O caso de amor do gaúcho Fagner pela capital paranaense ainda está em análise. Ele não sabe explicar. Terceiro de quatro filhos de comerciantes remediados do Rio Grande do Sul, estudante de Engenharia Civil, poderia ter ficado por lá. Mas encasquetou que queria “subir”. A primeira noite em Curitiba passou de favor, no 15.º andar de um prédio da Praça Rui Barbosa. De manhã, ao abrir a janela e olhar para baixo, entendeu que nem em Planalto, nem em Sarandi, nem em Pontão – seus rincões gaúchos – tinha visto tanta gente junta. Gostou. Ao descer, para explorar o território, cumprimentava a vizinhança, como se estivesse na festa da uva, sem ouvir um pio em resposta. Não achou ruim, achou engraçado. Começou a gostar dos curitibanos ali, no que foi correspondido.
Dali em diante, seu observatório da estranha forma de vida nas araucárias mais e mais deu de se sobrepor às obrigações da engenharia. Ao conhecer Cadu Scheffer, líder e ideólogo do Tesão Piá, não teve mais como segurar. Com sua trupe, virou fenômeno YouTuber. E queria o palco – de onde pode ver gente quase esmorecendo, de tanto gargalhar. É seu pagamento, diz. Acabou que deixou a faculdade para depois, mesmo estando em dias de se formar. Na noite de 25 de março de 2014, quando sentiu um “treco” lhe estalar o pescoço, o engenheiro veio em seu socorro: raciocinou com a frieza de um.
Fagner Zadra tem planos a rodo – escreve dois livros. Não diz se vai ser como Joan Didion, em O ano do pensamento mágico, mas não faria feio se descrevesse a lucidez com que avaliou a quebra das estruturas do seu corpo. Peçam a ele – é uma ode ao espírito humano. No mais, prepara-se para retomar a rotina blogueira, estuda propostas da televisão, arranca aplausos com seu projeto solo, uma sit down comedy. A novidade é que em meio ano vai abrir uma fundação que leva seu nome. A ideia é oferecer tratamento, mas sobretudo usar de seu conhecimento técnico para desenvolver próteses, maquinário, uma central de inteligência para cadeirantes e congêneres. Foi inevitável, a pedidos. Calcula haver 35 mil deficientes na cidade. Ajudá-los talvez credite algum significado à bola de isopor que despencou na sua direção, num flagrante atentado da tragédia à comédia. Que luta.
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