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José Carlos Fernandes

A vida dos outros

Tempos atrás, eu estava no ponto do ônibus quando um cara parou do meu lado e, do nada, me contou tudo. Tudinho. Falou da infância de fartura em Campo Mourão. Das desditas da juventude. Das drogas. Do sexo. Da contaminação pelo HIV. Da chegada de um filho, quando já se sentia sepultado. Nisso aparece sua mulher, saia abaixo dos joelhos, cabelos piedosamente até a cintura, e se vão juntos, mãos dadas, no sumidouro da Praça Tiradentes. Como escreveu Walt Whitman, "a vida fez sentido até o dia seguinte".

Não é a primeira vez que acontece. Lembro da ocasião em que uma entrevistada me ofereceu um café. Ainda falávamos do assunto da reportagem quando ela teve súbita mudança de humor. Grudada à pia, esvaiu-se: "Descobri que meu filho é gay. O que faço?" Almodóvar adoraria a cena: "Mi hijo es maricón. Diós, que hazo?" Fui pego tão de assalto que só me restou soltar um pamonha "calma, isso passa..." Depois seguimos num papo bem temperado, com aquela cumplicidade obscena que às vezes nasce entre os desconhecidos. Já reparou?

Outra vez – e foi bem engraçado – almoçava com uns colegas quando a amiga de um deles saiu da mesa em que estava e puxou um lero. Veio fazer um social, mas em cinco minutos provocou a pororoca. Sem mais, contou que era lésbica, descreveu seu modus operandi na intimidade, gargalhou ao lembrar da cara de horror da sua diarista ao saber das acrobacias da patroa. Mesmo tendo nos deixado sem palavras, pediu que não contássemos a sua mãe – uma senhorinha que podíamos ver na outra ponta do restaurante, de cabelos brancos e xale nos ombros – que estava fechando o sex shop da família. "Tsc, tsc. Ela vai se decepcionar comigo mais uma vez..." E se foi.

Nunca me achei um bom "confidente de ocasião", exceto nos tempos de São Paulo. Mas em SP não vale. No metrô, é comum alguém puxar papo e contar que acaba de sair da condicional, que assaltou uma velhinha nos Jardins, que ama vadiar no Anhangabaú ou que tem vontade de calcinar os cachorros que fazem cocô nas calçadas do Higienópolis. Depois cada um entra num vagão e nunca mais se veem mais gordos. A rotina cosmopolita tem essa vantagem: na metrópole todo mundo trabalhou no Hair e parece um pouco a "tigresa" da música do Caetano.

Mas aqui nos matos do Paraná é diferente. Em Curitiba não existem seis graus de separação, existem dois graus e meio quando muito, três se alguém mora na RMC, quatro se for de Doutor Ulysses. Difícil ser anônimo nessas bandas, daí nossa reserva em sair por aí, às escancaras. A não ser que alguém tenha o dom sobrenatural de provocar declarações desaconselhadas para menores.

Conheço gente que nasceu com esse abridor de latas sentimental. Seus olhos são dois faróis. Como que por hipnose, diante deles as pessoas liberam as caixas-pretas. Depois se vão, passarinheiras, desfrutando do que, suponho, ser a crença de terem cruzado com um fiel depositário de questões cabeludas.

É interessante o que diz a respeito a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Estaríamos vivendo tempos mais desbeiçados. Incontinência verbal deixou de ser exceção para virar regra. Ela usa a expressão "guinada subjetiva" para traduzir esse momento em que todo mundo quer ser personagem principal. Em tempos idos, diz Sarlo, a gente se projetava nas figuras do cinema e da literatura. A Ilsa, personagem Ingrid Bergman em Casablanca, por exemplo, representava os sentimentos das mulheres do pós-Guerra. Vê-la na tela era ver-se. Mas hoje não. A maioria quer acreditar que sua história pessoal daria um longa-metragem, contando-a ao primeiro que der sopa. Isso explica os reality shows, o "Arquivo Confidencial" do Faustão, as postagens no Facebook.

Sarlo é realista de doer, claro. Sugere que não queremos mais nos sentir igual a um monte de gente, mas iluminados, o que nos reduz a bufões da saga da batatinha frita. O preço desse exibicionismo é nos fazer ainda mais solitários. Mas convenhamos que esse momento esquizofrênico da humanidade tem seu charme.

Nossos confidentes despudorados fazem com que nos sintamos aquele burocrata da Stasi do filme A vida dos outros, de Florian Henckel. Medíocre, ele começa a ter sua percepção alterada ao grampear um casal de atores da antiga Alemanha Oriental. Descobre que o mundo é maior do que imaginava. Quando ele mesmo já não cabe mais no minúsculo espaço da realidade onde vivia, faz enfim algo que preste.

Esses caras que nos abordam na Tiradentes são ou não são uns sacanas?

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