| Foto: Foto: Giuliano Gomes / Arte: Felipe Lima

Usassem os homens chapéu, o simples pronunciar do nome do cronista esportivo Levi Mulford Chrestenzen, 85 anos, provocaria uma revoada de abas-de-panamá, saudando-o como a um príncipe dinamarquês. É justo lhe reservar solenes honrarias. Há mais de seis décadas, Levi assina uma festejada coluna sobre futebol amador, primeiro no Paraná Esportivo, depois na Tribuna do Paraná – ofício que faz dele uma autoridade em contendas suburbanas, pelejas varzeanas e peladas em geral.

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Tem quem se pergunte de onde o veterano tira tanta ciência – ele é capaz de citar detalhes de uma obscura partida do extinto Cinco de Maio F.C. ocorrida em tempos que parecem pré-históricos até para quem usou um chulezento Kichute. “É raro eu ir ao Google”, admite, diante de sua inacreditável biblioteca de recortes de jornal, instalada num subsolo de sua casa, no Pilarzinho. Ali funciona seu site de procura manual – feito por ele mesmo. Quem tem a sorte de conhecer o acervo sente o ímpeto de algo mais do que arrancar o chapéu. É de se ajoelhar. Por que guardou? “Pena de jogar fora, só isso”, resume. Não o tomem por um Mário Filho, Roberto DaMatta, José Miguel Wisnik ou Franklin Foer: o título de pesquisador não lhe cai bem.

Fuçar as estantes do Levi é puro esporte para os enxeridos. Iguaçu, Bangu, Nacional, Urano, Vila Fanny. Está tudo lá

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Numa contabilidade ligeira, a biblioteca de Mulford tem cerca de 500 metros lineares de documentação. Todos os dias, é sagrado, ele empunha a tesoura, recorta as notícias esportivas sobre clubes como o Trieste ou o Combate Barreirinha, cola-as num papel sulfite e as arquiva. Com o tempo, as pastas engordam e os recortes formam um livro que envia para uma encadernadora – que fica logo ali, a dez passos. Numa sala ao lado, o jornalista guarda tipos móveis, folhas douradas, prensas, guilhotinas. É o que basta.

Fuçar as estantes do Levi é puro esporte para os enxeridos. Iguaçu, Bangu, Nacional, Urano, Vila Fanny... está tudo lá. Na seção de clubes que já foram para o céu estão volumes sobre Rancho Alegre, Bola de Ouro, Belmonte, Umbará. Como a fama de colecionador obsessivo deixou de ser segredo, tem quem mande para ele o espólio dos times. Semanas atrás, recebeu parte da documentação que pertenceu ao Bacacheri Atlético Clube, um dia liderado pelo mítico Jovino do Rosário – hoje nome de rua nos altos da Boa Vista.

A estante do Coxa – que defendeu em 1947– é a maior e com as melhores encadernações: 28 ao todo. Ostenta lombadas de talhe perfeito, denunciando para quem nosso amigo torce. A parte do Atlético é menor e menos luxuosa, 26 volumes. Digamos que a coleção é tecnicamente imparcial. Em tempo, Levi faz pastas sobre as Copas do Mundo, campeonatos em outros estados e assuntos alhures ao futebol – a exemplo de curiosidades sobre Curitiba. Tem uma assombrosa coleção de discos de 73, 45 e 33 rotações. E fotografias – aos milhares.

Não há gaveta ali da qual não salte alguma de suas múltiplas coleções – o que inclui, diga-se, cada momento da vida dos três filhos que teve com Edite Lúcia. Conheceram-se enquanto ele cobria um jogo no campo do finado Primavera F.C. Como ela também apreciava catalogar, foram felizes para sempre e o acervo desmedido não foi arremessado pela janela, numa dessas brigas tolas de casal. Seria uma linda vingança.

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A coleção de Levi Mulford começou em 1946, quando ele tinha meros 17 anos e, salvo engano, ainda torcia para o Britânia. Sem dinheiro para comprar os jornais, copiava à mão as crônicas que lhe interessavam e as escalações. Aproveitava a deixa para também desenhar as camisas dos times. Na agenda que é o volume número zero do tesouro há uma foto da lânguida pin-up Leslie Brooks, porque ninguém é de ferro. Mas Brooks leva de lavada.

As estrelas da papelada são mesmo os exemplares das raríssimas Gazetinhas Esportivas – tabloide que a Gazeta do Povo fazia circular às segundas-feiras, de 1939 a 1943. Era dirigida por Francisco Castellano Netto e patrocinada pela Imperial Pielsen. O pai de Levi chegava com os exemplares debaixo do braço e repassava ao guri. Mal imaginava que estava fazendo nascer a mais completa biblioteca particular de futebol de todo o Paraná – quiçá do Brasil.

Suspeito que em se tratando de juízos de valor será preciso a arbitragem de um especialista. Estão ali, por exemplo, outras flores raras, como o Paraná Esportivo, que circulou de 1947 até o início da década de 1960. Pencas de revistas Placar – “cancelei porque hoje só traz fuxico de jogadores”. Além da excelsa biografia de Levi Mulford, deixadas distraídas aqui e ali. Em diários perdidos no meio das pastas é possível encontrar relatos das partidas que jogou pelo Palestra ou pelo Botafogo das Mercês, tudo religiosamente datilografado numa Sperry Remington 100. Valem o show.

Caso um interessado procure algo ainda mais caloroso, não faltam cartas mandadas a Levi pelos craques anônimos que conheceu. Falam de suas aspirações esportivas e tudo mais – do bate bola e do bate cartão. Os atletas de quem mal sabemos o nome têm nele um amigo. Dá para entender.

Levi com uma das pastas de recortes de sua coleção - pelo menos 500 metros lineares de documentação guardados em casa.
No detalhe, o livro sobre futebol escrito com Heriberto Iwan Machado. E um dos livros com anotações à mão.
Detallhe das anotações à mão: cada peleja, como se dizia, ia para os diários. Levi foi levado para a crônica esportiva pelo amigo Albenir Amatuzzi,
Na parte do acervo destinada aos jornais: difícil arbitrar qual é a joia da coroa.
Em ação: rotina diária de catalogação - “Sim, eu me tornei um escravo do acervo”, reconhece, mas com humor.
Com a raríssima Gazetinha Esportiva, que a Gazeta do Povo fazia circular às segundas-feiras, de 1939 a 1943.
Na hora de escrever, recorre ao próprio acervo. Não lhe peçam análises sobre a cultura do futebol. Prefere ser visto como um guardador de informações. “Pena de jogar fora”.