Nos últimos invernos, a cada vez que o telefone tocava na Fábrica de Pianos Schneider, mais seu proprietário, o italiano Caetano Primo Trevisan, 86 anos, se convencia de que o último expediente se aproximava. “Alô, é da Schneider? O senhor compra piano velho?” Não, senhor; desculpe, senhora – Caetano os constrói, peça por peça, calçado em uma tecnologia aprimorada em décadas de cálculos, cortes cirúrgicos de madeira e percepção solene do trepidar cordas. Dos deuses.
Há um ano, conformado de que não receberia mais encomendas, Caetano fechou a fábrica – na Estrada Velha de Colombo, Santa Cândida. “A Schneider não faliu. Foi se apagando, como uma vela”, compara. Mas não chorem. Nosso amigo já lambeu as feridas. Refeito, faz planos: sonha erguer em Curitiba um Museu do Piano, com equipamentos da Schneider e, quiçá, da Essenfelder – decana na produção do instrumento na cidade. Seria o único do país, instalado no local que lhe é de direito. Resta encontrar quem tope sair de braço dado com ele nessa empreitada.
Quem viajou por aí sabe do encanto provocado pelos museus voltados à tecnologia– em particular na petizada, sensível às relações de causa e efeito, ato e potência, liga e desliga. Um espaço que una máquina e arte, quem duvida, seria o ó. Mais. Além do acervo supimpa, Caetano prevê que os visitantes poderiam acompanhar a produção de um piano da primeira à última fase – com ele mesmo à frente dessa mágica. Seria melhor do que a fantástica fábrica de chocolates de Willy Wonka.
Caetano tem lá suas teses para o lugar discreto dos pianos nos lares de hoje em dia
“Tenho pressa”, adianta o homem que sente pânico a cada vez que ouve falar em ferro-velho. Ri do que diz– um Dario Fo da nossa paróquia. Depois explica a razão de sua tormenta. É um sujeito renascentista. Tem cabeça a mil, fala erudita e mãos calejadas – poucos podem tanto. Na meninice, aprendeu a tocar acordeão, a se defender no piano, mas também a fazer móveis – uma tradição dos Trevisan. Mostrou-se também um bamba em equações. Desenvolve-as em voz alta, para humilhação dos pobres inaptos a lidar com números. A soma de tantos conhecimentos o credenciou para inventar equipamentos – algo perto de 30 traquitanas tecnológicas. Estão guardadas na velha fábrica – seu pesadelo é imaginá-las sucata.
Um desses maquinários – feito do fim dos anos 1950 – servia para calcular e cortar as sofisticadas teclas de piano, incluindo o lugar escondido em que se tornam um balé de ângulos tortuosos, calculados para produzir mú-si-ca. Uma bobeira e desafina. Criou-o em 60 dias – chupem essa. “Para mim, é a precursora do computador”, decreta o homem pequeno, enérgico, afetuoso, dono de um impagável bordão sobre si mesmo: “Nasci pobre, curioso e inteligente”.
Caetano chegou à capital paranaense no ano de 1951. Causou. Em 1959, convidaram-no para trabalhar numa espécie de dissidência da Essenfelder. Nunca tinha construído um piano antes, mas era jovem o bastante para acreditar que montaria um com os pés nas costas. Para tanto, fez na época o que hoje ensinam os manuais de gestão: recolheu o conhecimento acumulado de cada operário e depois juntou os pedaços. Assim resume o resultado: “Era como se eu tivesse engolido um piano inteiro – o segredo de como fazer um piano estava dentro de mim”.
Driblou inclusive um veterano construtor de pianos, o germânico Oscar Schneider – cujo nome mais tarde rebatizaria a firma cindida dos Essenfelder, numa merecida homenagem. Schneider falava alemão; Caetano, italiano e português com macarrão (ainda hoje diz perché). Contra todas as evidências, entenderam-se, criador e criatura. Anos depois, Caetano viria a se tornar o dono da fábrica. Manteve o nome anterior, mas deixou sua assinatura em nada menos do que 8,8 mil pianos nos 44 anos em que comandou a Schneider – é doce a certeza de que pelo menos um deles está sendo tocado neste momento.
O expert tem lá suas teses para o lugar discreto dos pianos nos lares de hoje em dia. Algumas são similares às do crítico José Ramos Tinhorão. “É tudo culpa da Bossa Nova”, dispara, sobre os estragos que teriam causado o banquinho e o violão. Sobra também para a Jovem Guarda, mas em especial para o que chama de “plano dos homens”. Refere-se aos planos econômicos, pródigos em arrombar poupanças e esgarçar fábricas de piano, relegadas ao supérfluo.
A Schneider sambou bonito para ficar na praça. Numa das crises, o italiano inventou o primeiro piano desmontável do Brasil – passível de ser entregue numa quitinete ou no 19.º andar, sem necessidade de um guindaste. Popularizou o produto, mas nada. O preço caiu – do valor de um carro zero para R$ 2 mil e cacarecos, mas foi culpa da baixa procura. “O que tem de piano abandonado por aí...”, diz. Enquanto se ouve Caetano, difícil não lembrar da instalação, feita em maio último por artistas americanos, na Ponte do Morumbi, São Paulo. Deixaram lá em cima um piano sozinho. Cena triste. Diz tudo.