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José Carlos Fernandes

Alegres memórias de um abstêmio

 | Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima)

Domingo não é dia de missa para o jornalista e blogueiro Zé Beto – é dia de bater ponto na Clínica de Psicologia Quinta do Sol, no Jardim das Américas. Acontece quase tudo sempre igual. Ele chega às 10 horas – para os rapapés; às 11 horas está a postos, no meio de uma roda de cadeiras, pronto para orquestrar uma prosa voluntária com dependentes químicos. Duas décadas e tantas atrás, Zé foi um desses caras. Conta que volta à Quinta em gratidão, mas sobretudo para não esquecer que tem uma doença. Sua memória é péssima.

“Água?”, pergunta, ao abrir uma garrafa das boas, com gás, seu vício confesso. São algumas por dia, acomodadas num freezer, ao lado do computador. Ali alimenta o Blog do Zé Beto, há dez anos no ar, 60 mil postagens. A redação que montou para si é pocket – uma edícula da casa onde mora, no Seminário. Cumpre expediente sozinho, ou quase: o telefone “chora”, com uma pá de gente sugerindo notas para o cabra que circulou nos bastidores da grande imprensa – trabalhou 14 anos na revista Placar – e nos corredores do poder.

“P*, dias desses teve um sujeito que me alugou três horas...”, esbraveja, repetindo a performance que lhe impede de passar em branco. Zé Beto é grandão, careca, branquelo, sofre de incontinência verbal e solta risadas com força para trincar metais. Não é uma boa companhia para espíritos sensíveis a palavrões, mas compensa: aos abundantes sufixos “alhos” e “utas” do vocabulário soma finas informações sobre música, cinema e literatura. Não tomem por um ogro esse exagerado que vive cercado de bons livros, comprados em parcelas. “É uma das minhas compulsões”.

Deus e o mundo pareciam esperar muito daquele profissional de língua cortante

O paulistano Zé Beto nasceu Roberto José da Silva. Debutou nas lides jornalísticas em 1976, como revisor do jornal Folha de S. Paulo, mas foi nos tempos de Editora Abril que o jornalista Juca Kfouri, de gozação, inventou de apelidá-lo de Zé Béttio, o lendário músico caipira e radialista. Colou. Ao ser transferido para Curitiba, dois anos depois, nem teimava usar o nome de pia. Tinha virado Zé Beto e era improvável, nos meios de comunicação, quem ousasse soltar um “Zé quem?”.

Zé Beto não lembra ao certo quando a “malvada” deu de lhe assaltar o juízo, deixando-o no “atrapalho”. A birita estava incluída na rotina, beneficiada pelo seu grau olímpico de resistência. Era “bom bebedor”. Nunca deixou de ir trabalhar por causa de uma ressaca, até porque tragar era uma forma de enfrentar o batente. Deus e o mundo pareciam esperar muito daquele profissional de língua cortante, personalíssimo como um lobo de Wall Street. Mal sabiam, mas tantos aplausos lhe davam febres.

Certa feita, ao ser promovido, travou. Trancou-se no quarto um mês, acompanhado de pencas de filminhos em VHS. Volta e meia Zé Beto conta em seu blog algumas passagens de sua nada sóbria vida. Mas leiam sem lencinhos de papel. Considera-se um sortudo. Deixou o rabo na porta do Pinel. Assistiu a todas as tragédias gregas, da coxia. Houve aquela vez em que por encanto acordou dentro de um camburão. Na noite anterior, tinha se encrencado com um taxista. Sem saber o que fazer com aquele passageiro cinco tons acima do normal, o motorista o entregou aos cuidados dos fardados, que, sem saída, o botaram para dormir na viatura. Não havia crime, havia porre.

Outra vez, quando conseguiu abrir os olhos bebuns, sua cara estava sendo “costurada” por estudantes de Medicina, num pronto-socorro. Destruiu o carro num poste do Alto da XV, mas, se lhe dissessem que chegou ali trazido por extraterrestres, concordaria com o dedão: “Não lembro de nada, nada”. Entendeu que não podia mais se encharcar – e cumpriu o propósito substituindo o álcool por generosas doses de cocaína, na veia. O enredo desse segundo capítulo segue o ritmo de uma montanha-russa desgovernada. Começa parecido com Se beber não case, mas termina como Réquiem para um sonho (filme underground de Darren Aronofsky). Escolham uma cena – Zé é capaz de se ver em todas, 3D.

Em 2015, nosso sobrevivente completa duas efemérides – dia 14 de outubro próximo fecha 21 anos sem usar cocaína. Em novembro, 25 anos de abstinência etílica. Não pensa em festejos, até porque a turma detesta brindar com água mineral da San Pellegrino. Há até quem reclame, alto e bom som, alegando que Zé Beto era mais divertido quando estava alto. Ele discorda – se achava um chato. Ficava cool jazz, que preguiça. Sóbrio, virou hiperativo, a ponto de bala, um alagoano típico. Hã?

Em tempo – uma das histórias mais queridas de Zé Beto é a de que seus pais são da Palmeira dos Índios, nas Alagoas, terra afetiva de Graciliano Ramos. Não chegavam a ter parentesco com o autor de Vidas secas – “mas ele morava do outro lado da rua”. Foi o bastante. Zé Beto guarda de cor as pérolas sertanejas ditas pelos seus. “Pai, por que o senhor veio para São Paulo?” – “Cismei.” “Mãe, por que a senhora nunca me encheu de abraços?” – “Porque aprendi assim.” Curto, grosso e perfeito, à Graciliano.

De todas as terapias a que Zé Beto se sujeita, a melhor é visitar Palmeira dos Índios – de encontro com a palavra árida. Suspeito que nos mil domingos que dedicou até hoje à turma da Quinta do Sol, nada mais faz do que lhes dar ouvidos e verbetes cheios do Velho Graça. No mais, não encham o saco: ele cismou que vai ajudar alguém – foi assim que lhe ensinaram. Só por hoje.

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