A historiadora Ângela Machado, 39 anos, é uma mulher pequena. Tem 1,54 metro e pouco mais de 50 quilos. Em 29 de abril de 2015 – há exatamente um ano, durante o episódio batizado por muitos de o “Massacre do Centro Cívico” –, a estatura e a leveza acabaram por colocá-la de novo no início da fila, como nos tempos do grupo escolar.
Uma grade de proteção – perto da qual Ângela estava – desabou debaixo da fúria gerada pelas balas de borracha e gás lacrimogêneo, enviados em doses dignas de Praça Tahrir, na mira da cabeça, tronco e membros dos 20 mil manifestantes. Ela fez o que todo sujeito com juízo faria – passou sebo nas canelas, mas com saldo de vantagens sobre os mortais. Não lhe faltou agilidade para passar por cima do escombro, desviar dos aparvalhados, sair da mira de um balaço, proteger a boca e os olhos com uma canga, cuidar da bolsa a tiracolo e da camisa jeans presa à cintura, sem deixar de sondar os amigos que ficaram presos às próprias pernas. Correu até se ver no epicentro do campo de batalha, onde tudo aconteceu.
Estudiosos de guerra – a exemplo do escritor Domingos Pellegrini – dizem que os baixinhos e magrinhos são os melhores soldados, à revelia do fetiche bélico pelos fortões. Os miúdos passam brincando pelas manilhas. Chegam ao topo das árvores como se fossem figurantes do Planeta dos Macacos. E nenhum galho quebra por causa deles. Armam tocaias em qualquer buraco, sem o incômodo de ter de encolher a barriga. Se duvidar, voam.
Estivesse, sei lá, em Waterloo ou no Itororó, Ângela teria feito bonito, chegando ao ponto exato onde o heroísmo rege a fanfarra. Como que por um capricho dos deuses, viu-se sozinha diante de uma tropa de choque da Polícia Militar – enfileirada e em marcha sem piedade. Havia aparato ali para pisotear com coturnos pelo menos 101 professorinhas, reduzindo-as a panquecas.
Num estalo, avaliou a gravidade da cena e tirou energia até dos intestinos para dar o troco. Virou-se e desafiou os marmanjos de farda. Era apenas uma mulher desarmada. Ajoelhou-se. Sabe aquele segundo em que a Terra parece parar? Pois é. À noite, numa corrente do WhatsApp, descobriu que a cena tinha sido registrada pelo repórter fotográfico Daniel Castellano, da Gazeta do Povo, o homem que estava lá. Ao se deitar, ficou de olhos pregados. Um novo capítulo de sua biografia teria início assim que colocasse a mesa para o café da manhã.
Os baixinhos e magrinhos são os melhores soldados
A série de fotos de Ângela – em fuga, em resistência, em súplica – não resume o “29 de Abril”. Há tantas outras. A imagem do também professor de História Fabiano Stoiev, envolto em fumaças, clicado por Henry Milléo, um gazetiano, é uma parente fotográfica do pintor Delacroix (A liberdade é a guia do povo). Castellano, no entanto, foi o que traduziu no ponto o tal do “espírito das coisas”. Conta a favor o primor estético, ter captado o instante mágico ditado por Cartier-Bresson, mas, sobretudo, ter escaneado a verdade daquela tarde em que os reis ficaram nus em praça pública.
O público não tardou a se apropriar da foto, fazendo dela um símbolo, contra o qual os caretas nada mais podem. Bananas para eles. Memes divertidos a metamorfosearam numa das imagens que bem traduzem o desespero humano do século 20, a série de telas O grito, do norueguês Edvard Munch. Um livro didático carioca transformou o registro em figurinha para colorir. Pacifistas a colocaram na rede, lado a lado, com outra fotografia, a da menina Kim Phuc, atingida pela bomba de napalm na Guerra do Vietnã, em 1972. O clique de Huynh Cong “Nick” Ut, diz-se, mexeu com a opinião pública americana e foi o estopim para o fim da intervenção na Ásia.
Mais? Para outros tantos, a composição que mostra Ângela ameaçada por uma fileira de escudos da PM é a nossa versão para o Protesto da Paz Celestial (China, 1989). A foto do suposto professor de Matemática se pondo na frente de um tanque comoveu o planeta e derrubou a máscara chinesa. A identidade do personagem é um segredo guardado nas muralhas. Ninguém sabe, ninguém viu, o que naquelas bandas deve ser bem fácil, com seu bilhão de olhos puxados. A propósito, o autor da foto é o norte-americano Jeff Widener, com quem muitos desejaram se parecer dali em diante. Penso que o clube inclui Daniel Castellano e os demais plantonistas que bateram ponto e fizeram hora extra naquele 29 de abril.
Em tempo, Ângela é uma menina do interior. Foi criada em Tijucas do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba, filha de um pedreiro e de uma costureira. Cursou Magistério, lecionou para as crianças e cursou História na Universidade Tuiuti, onde foi apresentada tardiamente a um dos livros de sua vida – Os carbonários, de Alfredo Sirkis. Casada, mãe de três filhos, leciona em dois colégios estaduais. Mora num dos muitos sobradinhos do bairro Uberaba e sua rotina só não é mais antinovela porque agora tem três perfis abertos no Facebook. Antes da foto, não passavam de 60 amigos, com os quais interagia enquanto lixava as unhas. Agora são 1,5 mil curtidores e compartilhadores – uma imensa campanha da Itália. Arre.
A todos quer dizer “presente”. Uns lhe pedem que se candidate. Estuda propostas. Outros querem informações sobre política educacional. Muitos ainda querem que conte a “história da foto”. De minha parte, adoro a parte pouco papagueada, aquela em que ela ficou acuada na estação-tubo, em companhia de um adolescente. Não se conheciam. Falaram-se por alto e se tornaram cúmplices instantâneos, como só os seres afetivos sabem ser. Quando a polícia catou o guri pelo braço, Ângela levantou para dez, como se tivesse 2 metros de altura: “Sou professora e esse menino é meu aluno. Está comigo”. Não lhe deram ouvidos. Ele seguiu carregado para o meio do caos, sem nem contar como se chamava. Ela, para a Terra de Gigantes, onde Daniel Castellano a encontrou de uma vez por todas.
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