O empresário Marcos Schier bem que tentou. Nos últimos dez anos, manteve em pé o barracão de madeira desativado onde, por oito décadas, funcionou a fábrica da Selaria, Tamancaria e Sapataria Schier, na “Pracinha do Novo Mundo”. Agora, “quem” desistiu foi o próprio barracão, que jogou a toalha, arriou, pedindo os préstimos urgentes dos serviços de demolição. Ou isso ou atirará telhas e tábuas às cabeças de alguém.
Uma pena. O local poderia ser convertido num desses museus sobre o mundo do trabalho em geral e da cultura tropeira em particular. Produziu arreios e montarias do cotidiano dos paranaenses de outrora. Mais: o local seria um centro de pesquisa dos calçados, essa peça injustiçada do vestuário. “Calçar” faz parte do processo civilizador. Exagero? Repare na quantidade de gente descalça em fotos de proletários da primeira metade do século 20. Inclua-se na lista os pobrezinhos dos pequenos jornaleiros. Se não ficou convencido, considere por que, até hoje, comprar sapatos é um ritual burguês.
Salvar acervos peculiares é iniciativa louvável, merece medalhas de honra ao mérito, mas não é bolinho
Em seu auge, a oficina abrigou 70 funcionários de uma vez só, produziu 130 sapatos por jornada e forneceu artefatos para abastecer a capital e o interior. Os sacos de estopa com pares até a boca eram despachados na estação de trem, ali perto, espalhando a marca Schier por todo esse Paraná lindo que só.
Os vagões levavam as botinhas de meninos ricos, tamancas bordadas para as colônias polonesas e badulaques que os tempos de hoje não permitem mais. É o caso dos estojos para facões. Os cinturões para colocar as balas de revólver – sim, andava-se armado. As inacreditáveis passarinheiras, espécie de chaveiro com tiras de couro e argolas, nas quais os caçadores de passarinho penduravam suas presas. Pois é. De tudo isso um pouco Marcos guardou exemplares, negando-se destiná-los à fogueira.
A antiga oficina é invisível para quem passa pela Avenida República Argentina. Além de modesta – tem 150 metros quadrados –, fica atrás da Loja de Calçados Schier, fundada em 1930 e instalada num prédio de 1902, com folga a mais tradicional da cidade ainda na ativa. É um fenômeno. Embora vizinha de uma novíssima referência urbana – o Shopping Palladium –, muitos ainda informam seu endereço dizendo morar “antes ou depois do Schier”. Chupem essa, novidadeiros.
A loja está singrando o século, com clientela fiel, mas nem todos os fregueses tiveram a sorte de apreciar a graça da selaria. Quem bisbilhotou registrou a emoção com uma foto. Tão discreto quanto é o museu instalado no sótão do comércio, aberto com visitas agendadas. Do contrário, os saudosistas crônicos e os cidadãos interessados não sairiam mais de lá, hipnotizados pela máquina de datilografia Woodstock, 1939; por um jurássico rádio de madeira da Telefunken; pelo caprichado registro do guarda-livros na década de 30; ou por vetustos anúncios da Alpargatas. Sem falar nas fotografias dos blocos de carnaval de 1936, no Clube Literário, frequentado pelos irmãos Levino, Manoel e Tito Schier e os seus.
Salvar acervos peculiares é iniciativa louvável, merece medalhas de honra ao mérito, mas não é bolinho. Não à toa muitos se desfazem das heranças, temendo serem escravizados por elas. Num levantamento rasteiro, consigo listar pelo menos 25 famílias que mantêm – com sangue, suor e lágrimas – objetos históricos que interessam a você, à sua tia e sua comadre. Não chamo esses colecionadores de santos e mártires. Há quem mereça chutes na canela, por terem feito pouco caso dos presentes que receberam. Mas há de se considerar que em muitos casos esses herdeiros não encontram ânimo nem para repassar as peças graciosamente.
Ou não acham instituições interessadas ou esconjuram ao saber das desventuras sofridas por quem doou e viu o patrimônio virar poeira nas mãos de gente sem coração. É caso de polícia. Enquanto isso, cresce na internet o câmbio de relíquias, usadas para decoração, alimentando o bougisme, uma espécie de culto fetichista que mais tem a ver com vaidade do que com memória.
Marcos Schier mesmo perdeu a conta de quantos pediram para comprar “apenas” o emblema de ferro de uma magnífica costuradeira, uma das 20 máquinas importadas compradas por seu pai, o visionário comerciante Levino Schier. Homem elegante, informa que nenhum item está à venda, obrigado. Em segredo, acalanta lá seus fantasmas. Teme o dia em que o maquinário vai virar ferro fundido – o que pode acontecer.
Com o desmanche do barracão do Novo Mundo, a parte pesada da selaria está sepultada, num estoque. Há inclusive endereços especializados nessa tarefa, para socorro dos donos de acervos que viraram estorvos. Não deixa de ser engraçado saber que parte do nosso imaginário descansa na paz de caixas de papelão. Que o futuro se apiede de nós.
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