| Foto: Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Em toda a cidade de Curitiba, existe uma única pessoa que não reclama dos cupins. Não se trata de um alienado. Antes, um iluminado. Chama-se Antônio Cordeiro dos Santos e tem 89 anos. Pedaços de madeira comidos pelos isópteros – como dizem os cientistas – são recebidos com banda de música na sua velha casa, uma quase chácara plantada no ponto mais alto do tobogã automotivo da Rua Tabajaras, na Vila Isabel. Tem os bárbaros que dão ferro no asfalto, e os que põe velharias no portão do vizinho – de presente. Ele as recebe como se fossem cestas de abacates. Estuda os mapas deixados pelo bicho na madeira, pasmo com as cenas da vida minúscula. Entregue à sanha dos cupins, Antônio se torna Arney, o artista.

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Nosso personagem nasceu em 1926, décimo filho de uma família de pequenos sitiantes de Piraquara, na RMC. Estava destinado às roças, mas uma das irmãs decidiu lhe dar o nome de astro do cinema, “Arney”. Mal não ficaria naquele braço que vinha para ajudar na plantação de milho. E “Arney” ele seria não fosse o pai ter uma crise de esquecimento, na porta do cartório. Para não perder a viagem, registrou-o de um modo mais fácil, Antônio. Mas entre os seus permaneceu o Arney e pronto. Não virou agricultor nem ator de Hollywood. Virou ele mesmo.

Arrisca que em todas as culturas haja uma figura como Antônio, o Arney. Volpi? Djanira? Pollock? Van Gogh? Lista longa. São homens e mulheres que gravitam nos descolados circuitos de arte, sem se sentirem feitos do mesmo barro que os críticos, os jornalistas especializados e sobretudo os colegas de ofício, leitores de Gombrich e Greenberg. São forças da natureza, à prova de escolas de belas artes. Dentre esses, alguns se ressentem e se isolam. Há quem se atire à tragédia – como nosso Miguel Bakun. Há quem não faça drama e transite sem cerimônia nos vernissages, inclusive aqueles para as quais não foi chamado. É o caso.

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Arrisca que em todas as culturas haja uma figura como Antônio, o Arney. Volpi? Djanira? Pollock? Van Gogh? Lista longa

Além de agricultor, o pai de Arney era marceneiro, carpinteiro e – quase em segredo – pintor de naturezas-mortas. Bastava encontrar uma melancia no quintal. Primeiro retratá-las, depois comê-las. Foi uma primeira escola para o filho. A segunda se deu no Rio de Janeiro, quando servia o Exército e experimentou a cidade. A terceira, ao desembarcar em Curitiba e mostrar seus quadros para um daqueles caras que todo mundo espera encontrar um dia: o microbiologista (santa ironia) Alceu Schwab, expert em MPB, uma espécie de anjo da guarda em pele de ativista cultural. Era 1958, o ano que não deveria ter terminado. Ele nos deu a Copa do Mundo, a bossa nova, Adalgisa Colombo e, permitam, Antônio Arney.

Pois Alceu apresentou seu achado à turma da mítica Galeria Cocaco, na Rua Ébano Pereira, 52, o que deve ter sido o melhor empreendimento de sua vida. Em poucos anos, era como se Arney fosse amigo de colégio de bambas como Fernando Velloso, Fernando Calderari, Jair Mendes, Helena Wong e João Osório Brzezinski. Dia desses, ao reencontrar Calderari, abraçou-o com a força de um titã. Foi o “Caldeira”, conta, quem lhe sussurrou o melhor dos conselhos: seja você mesmo. O nome mais expressivo da vanguarda sulista salvou o novato de se tornar uma sombra.

É certo que Arney nunca viveu de arte, ao contrário dos demais. Até pensou que daria pé – depois de participar da Bienal de São Paulo de 1971 e ganhar uns dobrões. Só que não. Vestia paletó e gravata no expediente e bateu muito cartão em escritórios da Telepar e da Hermes Macedo. Calcula ter passado em pelo menos 20 firmas, apenas uma delas ligada a seu ofício, o Centro de Criatividade do Parque São Lourenço, no qual orientou oficinas por uma década.

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Nunca foi artista convidado de uma galeria, ainda que tenha, em tempos idos, deixado trabalhos na Ida & Anita, Acaiaca e Cocaco. Vendia mesmo era em domicílio, ali na “Tabajaras”, onde arquitetos até hoje costumam chegar em busca de algumas peças. Um deles atende pelo nome de Jaime Lerner e, se as contas estiverem certas, é feliz proprietário de oito quadros de Arney, de quem é um incentivador. O feito deveria constar em seu currículo, ao lado do Calçadão da XV.

Arney desconhece, mas houve momentos em que muitos decretaram seu chá de sumiço. Quem quisesse vê-lo, dizia-se, que fosse à Feira de Artesanato do Largo da Ordem, onde, ao lado da filha, vendia armarinhos de banheiro e mesinhas. “Era só um bico”, desconversa, afugentando quem vê melancolia em sua simplicidade. Nunca parou de produzir. Nunca se sentiu esquecido. A casa que divide com a mulher, Ivete, permaneceu pequena para tanta produção e tanta madeira carcomida, à espera de virar do avesso. Não consegue se sentir à vontade sem o que chama de “equipe de apoio”, formada por eles, os cupins, com os quais vive em amorosa cumplicidade.

Houve outros amores – é verdade. Na década de 1960, apaixonou-se pelos parafusos. Picasso teve a fase “azul”, Arney a “fase parafuso”. Deixava-os à mostra nas composições, como que saídos de uma rebelião na carpintaria. “O pessoal adorava”, lembra. Com o tempo, agregou novas habilidades – como tingir papéis e costurá-los com uma Singer –, o que faz com a destreza de um zen-budista. Melhor, taoísta. Essa é boa.

Arney é um homem que padece de um bem – a sensibilidade a níveis Timothy Leary. É capaz de chorar ao ver uma propaganda de xampu. A simples visão de um mendigo o deixa arriado. Se sai à rua, capta grandezas onde a maioria enxerga só rotina e fumaça de óleo diesel. Tem paixão por quem estende a mão. Desse seu gosto pelo que transcende, calcula, vem a explicação para ter sido batizado tantas vezes. Foi católico, batista, mórmon e agora taoísta – uma filosofia descoberta depois de dar trela para uma família de Taiwan com a qual puxou conversa na esquina. Coração cupinzeiro, seguiu atrás dos “chinas”, até encontrar o que não estava no script. Tem sido assim desde os idos de Piraquara.

Quando algo lhe invade a alma – vicia. É gamado no show que Dominguinhos fez em Nova Jerusalém. Calcula assisti-lo todos os dias, às três em ponto, no computador maneiro que arrumou. Emociona-se. Lembra que, guri, sonhou aprender acordeão e imaginou um futuro para si, gaita presa no peito. Músico, não era para ser. Voltou à carpintaria, mas obediente à dinâmica dos cupins. Devora o que encontra pelo caminho e faz com os restos coisas que nem imaginávamos poder existir. Chama-as de pintura. Não existe palavra mais terna.

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Esta coluna é dedicada ao pesquisador de arte Fernando Bini e à artista plástica Eliane Prolik – por andarem de braço dado com o mestre Arney.