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Uma coisa que me fascina são os heróis inúteis. É muito fácil admirar seres humanos que se sacrificam em nome de um bem comum óbvio, ou por um valor que, mesmo que não seja consensual, é compreendido por todos. Agora, há uma classe de heróis, raramente reconhecida como tal, que sacrifica sua vida, ou parte dela, em prol de algo que foge à compreensão de todos os outros seres humanos. Essa motivação que eles carregam dentro de si é algo que me faz sentir um misto de pena, inveja e admiração.

Sinto falta de mais histórias desse tipo na literatura, ou no cinema. A única que me vem à cabeça nesse momento é O Homem Urso, documentário do Werner Herzog. O filme conta a história de um rapaz que tinha a convicção de que conseguia se comunicar com ursos gigantes do Alasca, e dedicou sua vida a filmá-los. Ele ignorava qualquer norma de segurança e se enfiava no meio do território dos ursos como se estivesse passeando no Bigorrilho.

Os próprios guardas da reserva alertavam constantemente que seu comportamento errático era um perigo não só para ele, mas também para os ursos, que aos poucos estavam perdendo a cautela com humanos e se tornando presas mais fáceis para eventuais caçadores. No entanto, em sua cabeça, ele estava apenas fomentando a ideia de uma sociedade em que ursos e humanos vivessem juntos em harmonia.

O fim da história – que está no começo do filme, então não é bem um spoiler – é trágico e óbvio. Depois de 13 anos fazendo essas estripulias, ele e sua namorada acabaram sendo mortos por um urso, que, por sua vez, foi morto pelos guardas.

Bryan Henderson, um nerd de 50 e poucos anos do Vale do Silício, tem uma missão bem menos perigosa, mas não menos importante – pelo menos na sua compreensão de mundo. Ele quer erradicar o uso da expressão "comprised of" da língua inglesa – algo como erradicar o "a nível de" do português. Sua guerra é travada na Wikipedia. Cada vez que encontra um artigo que tenha a expressão "comprised of", ele a substitui por "composed of", o verbo correto.

Desde 2007, ele separa algumas boas horas de cada semana para eliminar essa expressão da internet. Para tanto, ele, que trabalha com softwares, criou um programa que serve basicamente para detectar a expressão "comprised of" na infinidade de palavras da maior enciclopédia da história da humanidade. Depois, manualmente, ele a substitui pela expressão mais adequada.

Não é pouca coisa. Assim como cada vez que você ligar para um call center alguém vai irritá-lo dizendo que o seu problema "estará sendo" resolvido, o "comprised of" é usado corriqueiramente pelos colaboradores (aliás, uma coisa que eu eliminaria do português: o uso de "colaboradores" no lugar da palavra funcionários) da Wikipedia. São milhares e milhares de arquivos que precisam ser editados. Em sete anos, ele editou 47 mil verbetes. Suficiente para colocá-lo entre os mil editores mais ativos da Wiki.

Acredite ou não, há muita resistência quanto à sua atividade. Muitos brigam por mera paixão pelo próprio texto: após tanto esforço para parir um artigo da Wikipedia, não aceitam ver um desconhecido mexendo em suas palavras. Um sentimento que eu, que admiro editores que me salvam de meus constantes e eventuais deslizes, raramente sinto, mas ao menos enxergo como legítimo.

Agora, há outro grupo que se incomoda com sua existência. "Como você passa horas corrigindo um único erro da gramática inglesa? Você não tem vida?", questionam. Vejo como uma espécie de inveja. As pessoas que o criticam por dedicar sua vida a corrigir um único erro gramatical não entendem o que é dedicar sua vida por alguma coisa.

E, francamente, qual é o sentido de nossas vidas? Como a gente pode contribuir para o futuro da humanidade? Eu não sei. Não faço ideia mesmo. Cada vez que eu penso nisso, a resposta é apenas um imenso vazio. Um vazio que incomoda, machuca, faz com que eu perca o sono. Aposto que a maior parte da humanidade sente o mesmo. Agora, meu palpite é que Bryan Henderson vai dormir todos os dias com a consciência tranquila de que está, de alguma forma, cumprindo sua missão na Terra.

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