| Foto: Foto: Marcelo Elias / Ilustração: Felipe Lima

Dia desses, na fila do supermercado, um freguês contou uma dessas piadinhas infames de japonês. Quando olhou para trás, deu-se conta da gafe. Ou de parte dela: parado entre o carrinho de compras e o caixa estava um sujeito que o piadista identificou como um japa. Teve de rebolar. "Ops, foi mal, desculpe aí."

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Mal sabe o pobre da saia-justa em que se meteu. Não se tratava de um japonês, mas de um indígena. E não era um índio como tantos, mas um dos seis últimos remanescentes da família xetá – fadada à extinção. Como se não bastasse, o homem pequetitito com cara de poucos amigos é oficial da Polícia Militar do Paraná, com quem não se brinca nem em fila de supermercado.

Pois Tiqüem Xetá, o próprio, achou é graça. Aquilo não foi nada. Nos tempos de mocidade, quando era atendente de quitanda, só faltavam lhe dizer "arigatô" e "sayonara". Ria. Ao saber de quem se tratava, batata. "Ah, é?" Todos queriam por que queriam saber da saga daquele sobrevivente da selva. Alguns até se autodeclaravam índios. E houve quem jurasse pelo penacho sagrado ser tão xetá quanto ele.

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A história de Tiqüem bem merecia ilustrar um livro dourado do tipo "as mais belas fábulas do Novo Mundo". Por enquanto, figura os grossos compêndios de antropologia, nos quais o fim anunciado dos xetás costuma ser tratado em teses augustas. Pudera – deu-se com eles uma dessas sacanagens transamazônicas que envergonham a terra brasilis.

Depois do contato desastroso com os caras-pálidas, em meados da década de 50, a tribo descobriu que nem todo dia era dia de índio. Em tempo recorde, perdeu suas terras na Serra dos Dourados, Noroeste do Paraná, para as lavouras de café e para o apetite canibal das companhias de imigração. Os xetás viraram errantes. Hoje, restam seis descendentes – três homens e três mulheres, todos aparentados, logo impossibilitados de se casar. Quanto à cultura de seu povo – está enterrada em alguma curva do Rio Ivaí.

Tiqüem, 46 anos, 25 passados na PM, nasceu em Guarapuava. Seus pais, Aericã e Iaci, morreram com a idade que ele tem hoje. De sarampo. Curumim ainda, acabou adotado pelo indigenista João de Menezes, separando-se dos irmãos Rondon e Ana Maria Tiguá, a quem reencontrou há pouco. "Ela achava que não tinha ninguém neste mundo", conta, sobre o que se tornou o maior traço dos raros xetás: a solidão.

Mas Tiqüem tem planos para acabar logo com isso. Em um ano, deve dar baixa na Polícia Militar, pendurar a farda e voltar para a Serra dos Dourados. Ali, pretende reconstruir a nação xetá num território de 12,4 mil hectares, o equivalente a três Cidades Industriais de Curitiba (CIC).

Será de novo a terra da Aãm, de Rondon, de Coen, de Maria Rosa do Brasil, de Tiguá e de Tiqüem – a tribo de bolso. Não só. Dourados deve ser a Panamérica, abrigando também caingangues, guaranis e brancos com quem os xetás já se casaram, e também seus filhos e os filhos dos seus filhos.

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Nesse lugar, a alma se chamava "nhang". Sonho é "ákâña". O dia e a noite diz-se "alâdia" e "poá". A casa – "tâpui". O céu – "tataka"; o fogo – "haikela"; a estrela – "iatêda". Permita Deus que ele volte para lá. Apaixonadamente como Peri.

OK. Nada será como antes. Já não se fala a língua dos antepassados, tampouco se sabe dos costumes e lendas. O próprio Tiqüem – tirando um furo na orelha e uns colares de coco com os quais a filha insiste em enfeitá-lo vez em quando – pouco lembra dos tempos em que sua gente vivia aos beijos do Sol e da Lua.

Será pele-vermelha a seu modo. Para Dourados levará sua coleção com o melhor de Chitãozinho e Xororó. Em vez de danças da chuva vai saracotear com um vanerão dos bons. Aos domingos, há de mergulhar no rio, mas depois do culto em sua igreja evangélica. E há de servir bolo de milho e nega-maluca para quem chegar. Tiqüem viu o mundo – o mundo segue com ele.