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José Carlos Fernandes

Aparecida de Fátima viu a pracinha

 | Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima)

A curitibana Aparecida de Fátima Nogarolli, 62 anos, é – como se dizia – uma mulher fina. Nem a junção de nomes populares como “Aparecida” e “Fátima”, retumbante homenagem a dois títulos da Virgem Maria, lhe roubam a aura de descendente de uma casa real europeia, de uma confidente de Sílvia Sommerlath. Seus gestos estudados e sua delicadeza natural indicam que tem berço. E seu berço atende pelo nome de Centro de Curitiba.

Ali nasceu e cresceu, em parte no Edifício Astor, entre duas praças – a 19 de Dezembro e a Generoso Marques. Provou de uma época dourada em que morar no principal bairro da cidade era sinônimo de ser cosmopolita. Na brincadeira, dá para dizer que as lojas surradas da antiga “Turquia” – em volta da estátua do Barão do Rio Branco – aumentam os preços só de ver Aparecida passar na calçada, uma sobrevivente do tempo em que bater perna na XV só não era mais chique do que ir ao Jóquei Clube.

Pois quem a vê flanando – com a suavidade de um táxi num dia de chuva – mal desconfia que suas habilidades ultrapassam o toucador. A primeira delas: é uma autoridade em comércio varejista. Tem ciência para prever as razões do sucesso – e da desgraça – de qualquer portinha. Não lhe escapam de lotéricas a salões de beleza, de inferninhos e pastelarias ensebadas a armarinhos à beira da falência. Basta-lhe bater o olho na fachada para fabricar um diagnóstico – não raro impiedoso. Quanto à segunda especialidade – não menos difícil de adivinhar –, Aparecida se tornou uma referência na Praça de Bolso do Ciclista, o mais ripongo dentre os espaços alternativos que Curitiba teve desde que a primeira camiseta ganhou um nó, foi de molho para a Qboa e deu à luz uma bata. Tudo isso, evidente, ao som de Aquarius.

Dá para imaginar o que os varejistas e os ciclistas pensam quando a veem chegar – que ela se perdeu a caminho do shopping. Ou que se trata de uma turista desavisada. Só faltam lhe dizer good morning. Logo passa. Aparecida se impõe pela etiqueta, e pelo conhecimento, repartido sem afetação. Dentre seus muitos feitos em prol do comércio está ter participado do projeto de revitalização das ruas Riachuelo e São Francisco, a partir de 2008. Quem acompanhou sabe que aquelas pecaminosas esquinas nunca mais foram as mesmas. Quanto à pracinha, foi objeto de sua festejada dissertação de mestrado, defendida no primeiro semestre deste ano, na UFPR, com orientação da jornalista e pesquisadora Myrian Del Vecchio. Aos fatos.

Sem espaços amados não há cidade possível. E sem cidades que mereçam este nome, renunciamos, ingratos, à mais incrível das nossas invenções

Houve uma época em que Aparecida de Fátima Nogarolli andava de táxi aéreo – imune aos sufocos de quem habitava um mundo sem ar condicionado. Eram os anos 1980. O Brasil estava saindo do rabo de foguete da ditadura militar para uma aparente aterrissagem de Sputnik. Quanto a ela, estava disposta a reescrever sua história. Começou se alistando entre os que combatiam o desperdício e o consumismo a qualquer preço – essa solene cafonice do mundo pós-humano. Como sempre foi reservada demais para se amarrar em árvores e se esgoelar em praça pública, afastou suas cascas de banana existenciais, vejam só, voltando à Riachuelo, seu antigo caminho da roça, se é que a expressão lhe cabe.

Estava em casa. Aparecida fala de gente como a dona Otília, da Casa Hilú, e do seu Marcinho da chapelaria como se fossem suas companhias do chá das cinco. Entende que, do mesmo modo que parentes, vizinhos ou os melhores amigos, os comerciantes são parte da nossa memória. Um freguês não entra só para comprar, mas também para jogar conversa fora com quem está no balcão. O que outra coisa não é senão visitar a si mesmo, num ano qualquer de um dia que se foi.

Trocando em miúdos, o pequeno comércio lhe parece um perfume para as urbes pasteurizadas pelos shoppings e franquias. Restava impedir que essa verdade só valesse para lugares como Lisboa ou Istambul, cidades onde um comerciante à espera da morte ainda faz tilintar uma máquina registradora. E antes de tentar explicar que diabos isso tem a ver com a Praça de Bolso do Ciclista, vale lembrar que essa conversa não se presta ao saudosismo fabricado para manipular as massas, mas de urbanismo em grau máximo. Permitam, sem espaços amados não há cidade possível. E sem cidades que mereçam este nome, renunciamos, ingratos, à mais incrível das nossas invenções. Não sou eu quem diz, mas a Aparecida – e de um jeito que quase toda a turma da Riachuelo entende.

O movimento de revitalização do Centro Histórico teve patetices, evidente, mas é injusto esquecer que Aparecida – integrada à equipe do Sebrae, Fecomércio, prefeitura e lojistas – bateu palma de loja em loja, pediu licença para visitar os estoques, selecionou peças raras e montou uma grande feira na calçada. “Minha linguagem visual era diferente, mas falávamos a mesma língua”, avisa. “Eu trabalhei a sensibilidade. Isso é possível, tá?” Buscava uma fórmula para que a população voltasse ao Centro. Não para comprar coisas, mas objetos dos quais nunca mais iriam querer se separar. “Minha tese era de que, se a rua se tornasse convidativa de novo, o público voltaria.” Voltou.

Em 2012 – quando catava pautas para o multicolorido boletim Paço da Liberdade, do qual participa –, viu abrir um corredorzinho da Rua Presidente Faria: era a Bicicletaria Cultural, micro QG dos alternativos dos quatro costados. Dois anos depois, uma moçada com barba de lenhador, cabelo em coque e a bordo de uma magrela usou o muque para transformar um bico de rua abandonado numa praça viva, que só parecia existir nas comédias românticas. Aparecida de Fátima olhou aquilo de longe, de lado, de frente. Puxou papo com a moçada – alguns deles devem tê-la chamado de “tia”. Relevou. Logo assumiu que queria escrever sobre aquele fenômeno de urbanidade – e que precisa encontrar as palavras certas. Foi quando bateu em outra porta – na da academia, e encontrou Myrian, que abraçou a doideira de estudar um endereço cheirando a leite. Pois a ABNT comeu na mão da estética urbana, seja lá o que isso for.

A quem interessar possa, é bom ouvir Aparecida falar de “espaços amados” e “temas aderentes”, explanar sobre “lugares” e “não lugares”, surfar na obra de autores do naipe de Mongin, Tuan e Augé, para citar três. Também é bom saber que a Praça de Bolso do Ciclista – à revelia de ter se tornado uma espécie de terra sem lei, que pena – tem tudo para figurar numa agenda 21 de ideias capazes de salvar a pele do planeta. Mas de tudo, o maior barato é saber que foi justo essa grande dama, inesperada, quem antecipou a novidade explícita daquele banquinho de trencadis – nosso melhor Antoni Gaudí –, ladeado por uma árvore protegida com tricô. Até pouco tempo, havia lá uma tulipa grafitada no tapume. Sintetizava tudo o que Aparecida de Fátima, a varejista, queria nos dizer.

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