| Foto: Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Se a uruguaia Margarita Wasserman, 89 anos, tivesse de eleger o objeto síntese de tudo o que viveu, por certo escolheria um envelope de carta. Foi por carta que seu pai – o romeno Paulo Wasserman – se declarou à russa Sara Bakst, dando origem a um romance epistolar digno das melhores páginas de Gabriel García Márquez. Por carta, ao longo da década de 1970, Margarita se correspondia com as filhas Marli e Noemi, quando viviam no exterior. Eram três missivas por semana, cada filha, sem escalas. Graças à qualidade desses textos nascidos da pena de uma devotada mãe judia, Wasserman descobriu que gostava de escrever e se viu catapultada à literatura, uma paixão da maturidade.

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Entre seus incentivadores, um ex-amigo do Colégio Iguaçu, Dalton Trevisan. Ela deixava envelopes com pencas de contos e crônicas embaixo da porta do Vampiro, na Rua Ubaldino do Amaral. Tinha então a idade em que a maioria se abraça ao roupão de flanela – 65 anos. Desde sua estreia, em 1995, publicou 15 livros, alguns deles impagáveis autoironias, a exemplo de Do arco da velha de Curitiba. Tem um 16.º a caminho. Era também em envelopes de carta que a senhora Wasserman deixava colaborações na portaria da Gazeta do Povo, até meados dos anos 2000, na esperança de vê-las publicadas. Obteve êxito na maior parte das vezes.

Dona Margarita é mulher pequena, dona de olhos muito vivos, quatro pilhas ligadas e uma gargalhada de fazer eco nas catedrais. Fosse atriz, poderia ter afanado os papéis de Debbie Reynolds, uma especialista em interpretar judias na tevê americana. Os chapéus românticos, as saias floridas e o senso de humor à prova de bala – em tempos idos – eram garantia de que não passaria batido nem numa convenção de havaianas dançando hula. No momento está mais discreta, obediente aos achaques da idade. Cultiva cabelos alvíssimos, ao natural, de acordo com comportados cardigãs, mas nada que lhe tire o centro da cena.

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Em se tratando da matéria prima de seu novo livro – tem de se esforçar bastante. Margarita escreve sobre sua família, na qual a cadeira cativa de personalidade solar enfrenta concorrência. A começar por Paulo Wasserman. Sua descrição dos modos do pai – “todo engravatadinho” – é um vaudeville perfeito. Só não soa caricato porque a narradora tem uma capacidade dos deuses: para descrever o tempo da delicadeza. Qualquer fantasia lhe soa natural, como quando diz “nós assoviávamos andando pelas ruas”.

Os varões da família Wasserman formavam um timaço, mas seria a filha Margarita aquela a causar

Uma descrição encanta em particular. Cortejada por dois bons partidos da comunidade judaica do Uruguai da primeira metade do século passado, Sara Bakst recebeu um bônus de confiança para a época: podia escolher qualquer um. Que mandasse uma carta para o escolhido. Tempos depois, já casada, soube pelo carteiro que, antes do enlace, Paulo desabava feito um Buster Keaton pelas escadas do sobrado onde morava, a cada vez que via o carteiro. Amavam-se, apesar do arriscado modelo de gestão matrimonial que escolheram: ela era o feijão; ele, o sonho.

Os Wasserman tinham uma loja de lingeries, a Doble W, na Riachuelo, e uma lotérica, a Sonho de Ouro. Sara se acabava atrás do balcão. Paulo tinha mais o que fazer – em especial no Partido Comunista, do qual foi um dos membros mais devotados. Tanto que vendeu o casarão da família na Augusto Stellfeld e doou o dinheiro para obras revolucionárias. Quando se deu conta do exagero, ameaçou arriscar a vida, ardeu em febre, ficou de cama, mas não se converteu ao capitalismo. A passagem lembra umas tantas cenas de A era do rádio, de Woody Allen.

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Na porta da lotérica, “sempre de bolso aberto”, conhecidos lhe pediam uns trocos emprestados. Nunca negava, de modo que não há notícia de que tenham lhe faltado amigos. Velho e internado na Santa Casa, nenhum deles deixou de visitá-lo. E o fizeram com tamanha gratidão que uma irmã de caridade lhe deu alta. Que morresse em casa, pois não tolerava arruaças no corredor do hospital. O último pedido de Paulo a Sara foi que abrisse uma certa gaveta, pegasse um livro que estava lá, no qual anotava tudo o que devia. “Quanto ao que me devem, não me pergunte que eu não sei.”

Um judeu comunista e fanfarrão na Curitiba dos anos 1940, claro, faz as orelhas levantarem. Em especial porque um de seus filhos se chamava Marx, conhecido como Carlito. Ao registrá-lo, Paulo pensou em chamá-lo de Carlos Marx, mas recuou, resumindo-se ao essencial. O menino se tornou professor de História e perdeu a saúde depois uma trágica queda de bicicleta. O mais velho, Jaime, recém-falecido, seguiu a engenharia. Segundo consta, traficava cestas básicas para os pedreiros e chorava cataratas sempre que calculava o que aquela gente podia comprar com um salário mínimo.

Os varões da família Wasserman formavam um timaço, mas seria a filha Margarita aquela a causar. Ainda na adolescência, na década de 1940, esmurrou a mesa do temido delegado Valfrido Pilotto, numa ocasião em que o pai foi para trás das grades, acusado de subversão. Conseguiu a soltura. Ela não sabe dizer se foi naquele dia que se tornou quem é. O fato é que, anos depois, bateu forte na mesa de outra autoridade, dessa vez para saber o paradeiro de seu genro durante o regime militar. “Os auxiliares do delegado diziam que queriam uma sogra igual a mim.” De novo saiu na berlinda. Não muito tempo adiante, passou a chave na porta e deixou para fora o marido David Osna – também da comunidade. Ele que fosse ser feliz noutro lugar. Seria uma mulher separada e ponto.

A descendente de comerciantes remediados foi trabalhar fora – na Relojoaria Eisenthal e na Confeitaria Blumenau – até seguir como todos, via de regra, rumo à vida comum. Pelo menos foi assim até o dia em que Noemi – a filha jornalista e exilada política – se mandou para o Canadá; e a filha mais nova, professora de Inglês, para Israel. Sua descrição da solidão é uma Guernica em 3D. Chorou tanto e lhes escreveu em tamanha quantidade que Noemi, ao voltar, com a anistia, tinha uma mala atolada de cartas. Deixou-as lá, não sem arrependimento.

As “cartas da mãe” eram, sobretudo, cartas sobre Curitiba. “Eu contava para elas tudo o que acontecia na cidade.” Se bem recorda, levava algumas ao Correio quando encontrou Dalton Trevisan na rua. Pediu que as lesse e ganhou um elogio. “Esmurrei o ombro dele de alegria.” Marli corrige a versão. Diz que o que Dalton leu foram textos acabados, furados, amarrados com fita e deixados na caixa de correspondência da casa onde mora. Devolvia, com mesuras.

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Em 1995, Marli e Noemi editaram esses escritos, mandaram encadernar vários exemplares em capa dura e fizeram um lançamento para amigos no prédio onde até hoje os Wasserman vivem, na Francisco Torres. Virou rotina. O círculo de incentivo à estreante sexagenária passa a agregar também os escritores Valêncio Xavier e Jamil Snege, e a editora Antônia Schwinden.

Encantava a prosa fina como uma cristaleira, mas ao mesmo tempo capaz de expressar erotismo e humor. Num desses experimentos, produziu uma “carta retroativa”, datada de 1960, na qual se declarava a um grande amor de outrora. É um barato. A literatura lhe coloriu a rotina. De outra feita, aventurou-se pela Igreja do Evangelho Quadrangular, levada por uma amiga, “só para ver como era”. Temia-se que depois disso batesse em mais uma mesa – a do templo ou a da sinagoga. Margarita gargalha ao lembrar. Ser livre é mesmo ótimo.