O destino está dado. Em breve, será derrubado o “Presídio do Ahú” – desativado há uma década. Com o prédio abaixo, não vai sumir do mapa apenas uma arquitetura centenária, mas os diários escritos nas paredes pelos milhares de presos que ali cumpriram pena. Ao lado do beliche, no muro sem vergonha que separava a latrina do resto do ambiente, nos rodapés, nos vãos da porta de ferro, não se fazia cerimônia – em tudo que é canto os detentos davam nomes a amores, ódios e a toda sorte de sentimentos que somente eles parecem alcançar.
A construção do “Ahú” remonta ao fim do século 19, a princípio para ser um hospício – o Nossa Senhora da Luz. Em 1909, foi inaugurado como Penitenciária de Curitiba – recebendo 54 homens e 7 mulheres. O lugar causa impressão. Os pés direitos podem beirar seis metros de altura e a paredes, 60 centímetros de largura. Uma muralha. O único conforto são os tacos de madeira, ou o que sobrou deles. Pode-se dar 15 passos largos para cruzar de um lado a outro de cada galeria. Infinitos passos para cruzar uma ala inteira. As trincas de ferro – ainda por lá – deteriam uma manada de elefantes, para que se tenha ideia da força que move uma rebelião. A primeira foi em maio de 1931. A de 1993 durou 20 horas.
Numa primeira visada, quase nada na paisagem interna quebra a certeza de que o Juízo Final deve acontecer num lugar parecido àquele. Daí ser um espaço tão cobiçado pelos cineastas – Marcos Jorge o usou para uma das sequências de Estômago. Surpresa, mesmo, apenas o “motel”, no salão preparado para receber até 37 casais numa única hora de visita íntima. A sala do amor deve ter evitado muita guerra. Menos inspiradora é a ala dos segregados – pedófilos, estupradores, parricidas, deixados às celas 316, 317, 318, 319 e 320. Mesmo os que não creem fazem ali o sinal da cruz.
Diz-se que até 900 pessoas chegaram a dividir, ao mesmo tempo, os 14 mil metros quadrados de área construída do “cadeião”. Algo como até nove detentos apinhados em oito metros quadrados – muitos deles com acesso a um lápis ou a um pedaço de carvão. Poucos não fizeram uso dessa benesse, inclusive para escrever a palavra “liberdade” – em vermelho, com folga a palavra e a cor mais reproduzidas nas marginálias das 150 celas que formam o complexo. A contar pelo que sobrou, ao lado do “vermelho inferno”, o tom de pintura preferido pelos detentos é o “azul bacia de plástico”, aquele da marca Flexa. Há também cubículos ornados com quadrados, bicolores e medonhos. Os todos pretos. Mas a maior parte parece importada de Habana Vieja, tão carcomida está pela combinação de umidade, sol e cimento com validade vencida. Só o que não se vê é parede que não tenha recebido o benefício da pena – a pena outra, aquela conquistada à mão.
Os escritos das paredes do Ahú permitem saber dos hábitos dos encarcerados
Há quem tenha registrado ali o nome da cidade onde nasceu, fazendo de conta estar com a namorada num love nas pedras da praia de Matinhos: Quatro Barras, Cerro Azul, Paranaguá, Londrina ou Capanema. Quando não, deixavam o nome da mulher amada – Fabiana ganhou a letra de forma e a benesse de um retratinho 3x4. Consta a doce Diguinha e a virtuosa Carmelita, “a amada de Vanderlei”. Tem também quem tenha deixado na parede da ala masculina o nome de um homem, puta coragem: “Bruno Roberto te amo demais”. Reza a lenda que as celas com camas de cimento tamanho casal eram destinadas, como se dizia, aos veados. Duvido.
Não faltam homenagens explícitas à personagem da novela que os pobres detentos gostariam de conhecer ao vivo: “Tancinha, a gata do momento”; ou “a inesquecível Anita”, no caso, Mel Lisboa, em versão libertina nas páginas da Playboy, devidamente colocada num ponto estratégico da cela 403. No mais, nem Gretchen nem Rita Cadillac, antes uma obscura Dayse Brucieri. Mas nem tudo é sexo – há loas à banda preferida, o Iron Maiden, por exemplo. Ou a si mesmo – quem seriam Adamastor, Adaíldo, Carlos Adriano?
Os escritos das paredes do Ahú permitem saber dos hábitos dos encarcerados. Na hora do check-in, momento de desenhar um calendário na parede, para ali marcar um “xis” cada dia a menos. O da cela 106 merecia ser perpetuado pelas suas linhas potynianas. Alguns aproveitavam para acrescentar do lado dos meses, sempre tão demorados a passar, algum fato marcante: em outubro, a “morte da Craudinha”; em dezembro, “Sebastião 225 reais”. As paredes serviam de cadernetinha de armazém. Fossem os números somados, dariam um tratado de contabilidade carcerária.
Serviam também para organizar o cotidiano. Um infográfico colado rente à grade da janela ensina a fazer exercício: “Não endureça, comece já a se alongar”. Outro mostra como aumentar a fé, num cursinho por correspondência da Igreja Internacional da Graça de Deus. Prestavam também para lavrar horas de alegria, em especial o momento do check-out: “Bruno mudou em 8 de 11 de 2004”; “Ronaldo liberdade 12 de maio”; “Moisés 30 de liberdade”. Alguns libertos eram menos lacônicos e mais sardônicos: “Adeus casa da fome. Nunca mais me verás. Aqui criei limbo nos dentes”.
O melhor de tudo são as frases com fumaças literárias. Parentes do estilo lusitano – “nem às paredes confesso” –, mereciam um compêndio antes de virarem pó: “Soldado que sorri na guerra não chora em velório”; “quem inventou a distância não conheceu a saudade” [está lá por mais algumas horas ou dias, na cela 402]. Reparem nessa: “A linha do horizonte é a meta para quem não cansa de amar” – assinado: “um sobrevivente”. Na devassada cela 311 – “navego à procura de um barco chamado liberdade”.
Há beleza de canção nativista – um verso a Victor Ramil – em “sobre os golpes do destino, não me culpo. Sou comandante do meu coração e capitão da minha alma”. Mas penso que nada se compara aos versos de um tal Passarinho, pelo que tudo indica de São José dos Pinhais: “A gente mata vida. A gente inventa e sonha. A gente realiza a vida loka”. Sobra pragmatismo em “o crime não compensa, mas também não admite falha”. Por fim, destaque para uma frase que produz póstumos frios na espinha: “Não abuse da minha bondade ou você será vítima do meu desespero”. É provável que o autor tenha gozado de muita paz ao ameaçar soltar os cachorros.
O que não falta é desenho. Imaginem algo bem obsceno para a frase “dois porquinhos fazendo torresmo”. Surge uma suástica perdida no meio do nada – perto da última cueca presa ao último varal. Na cela 614, há uma interferência que – alô, senhores curadores – poderia estar numa bienal: uma parte de parede foi pintada de azul celeste e ali um preso pintou duas asas gigantescas. Nela, colou penas de verdade. Do ponto exato em que está a instalação, enxerga a cidade lá fora. Devia se colocar na posição de pássaro e fingir-se um João Gibão, bairro da Boa Vista adentro, na direção de Colombo, sua terra da promessa.
Ao homem pássaro do Ahú somem-se os minimalistas. Tem quem deixou nas paredes grossas apenas vastas emoções e pensamentos imperfeitos. “Destino perturbado”, consta num cantinho. Noutro, um resiliente “só por hoje”, traficado do AA. Em letras bem graúdas, mais adiante, um preso filósofo grafou a palavra POUCO. Simples como isso. Poderia ter sido bordada pelo artista plástico Leonílson num travesseiro – assim como fez um dia com a palavra NINGUÉM.
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