A arquiteta Rosina Coeli Alice Parchen faz parte da categoria cuja identidade se mistura ao ofício que pratica. É provável que até o porteiro de seu prédio a conheça como a “Rosina do Patrimônio”. Nada mais justo. Essa mulher delgada, ilustrada, enérgica e talhada para uma boa briga soma 37 anos de serviços em prol dos tesouros arquitetônicos e ambientais do Paraná. Nesse tempo, não brincou de casinha. Enfrentou ringues, ameaças de bala e desaforos tão cabeludos que abalariam o mais resistente dos maiorais.
Mês passado, ao assinar seu pedido de aposentadoria e limpar sua mesa, na Casa Gomm, desfrutou de um privilégio digno de ruborizar aquela parcela da população que não está nem aí para a Hora do Brasil. Ao olhar para trás, enxergou a Serra do Mar, os centros históricos da Lapa e de Paranaguá, estudos sobre fazendas coloniais dos Campos Gerais, ações no Norte Pioneiro, a paisagem passadista de casarões da Rua Comendador Araújo, para citar alguns dos espaços que ajudou a preservar, não raro com bravura, na companhia de homens e mulheres de boa vontade – sua turma.
Em 20, 30 anos, quando um pesquisador se ocupar de responder como o Paraná conseguiu preservar tanto – ou não –, vai se deparar com o nome de Rosina Parchen em um sem-número de atas e processos. Há de conferir os dados mais de uma vez, julgando estar diante de uma heroína às voltas com uma missão impossível, hábil em desviar do atirador de facas. Vai confirmar que esse personagem existiu. O que lhe renderá uma belíssima tese. Um romance. Ou um processo movido por algum canalha.
Fazer da profissão uma razão de viver, evidente, não foi nenhum mar de rosas. Rosina está longe de ser uma unanimidade. Deve ter quem atravesse a calçada ao vê-la. Em quase quatro décadas de serviços prestados, enfrentou barriguinhas satisfeitas, donos de prédios históricos munidos de escopeta; advogados ameaçadores, arrotando sandices sobre o direito incontestável de mudar fachadas de propriedade privada; superiores sem luz que lhe mandaram arquivar projetos essenciais à memória. Sem falar na kafkiana proibição de pôr os pés em determinados pontos do mapa. O caso do ministro Geddel Vieira Lima – que ano passado redundou na demissão do ministro da Cultura Marcelo Calero – é um aperitivo perto do que acontece nesses bastidores.
O caso do ministro Geddel Vieira Lima é um aperitivo perto do que acontece nesses bastidores
Certa feita, na cidade em que Rosina fazia inventários, um motorista a seguiu e ameaçou atropelá-la. Ganhou uma banana em resposta. Passou a ir a campo acompanhada e a chamar testemunhas para ouvir conversas com autoridades e endinheirados, regadas a cafezinhos, mas sobretudo a achaques que os pulhas reservam às santas mãezinhas. Um político a apelidou de “tombete de plantão”, reduzindo-a à caricatura de uma periguete. No atacado e no varejo ganhou desdém de muita gente que tinha por obrigação fazer coro com ela. Mas uma verdade deve ser dita – mesmo entre seus detratores, difícil encontrar quem não lhe reconheça a firmeza de caráter.
É osso duro de roer. Bate na porta das cabeças coroadas. Se não lhe dão ouvidos, chuta-lhes a canela. No último ano à frente do Setor do Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura, a arquiteta travou batalhas para mostrar que a Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, erguida no século 19, não suporta mais transporte de carga. Para salvar a cidade de Castro de virar uma aberração. Fez parte da grita que defende a manutenção da Escarpa Devoniana, debaixo do risco de virar um quintal dos gananciosos. Chamou às falas gente graúda, para que restaure e preserve os imóveis tombados que estão em seu nome. Andava com as orelhas em brasa – é fato. O fim da carreira veio acompanhado de sucessivas chaves-de-braço, comprovando a máxima desiludida do cubano Tomás Gutiérrez Alea, para quem o calor dos trópicos apodrece a cada tarde a flor e a fruta fresca da manhã.
A dizer: em pouco mais de um ano, viu o conselho do patrimônio, o Cepha – instituído por lei, em 1953, e formado por notáveis –, ser nocauteado pelo Decreto Estadual 2.445, de 2015. Hoje, no Paraná, para um processo de tombamento ser aberto, precisa passar pela mesa do governador, que o envia para o procurador-geral, para só depois chegar às mãos de representantes da sociedade aptos a julgá-lo. Não é preciso ser muito esperto para entender onde pode chegar essa concentração de poder.
À época, parte do conselho pediu afastamento, em protesto contra a perda de autonomia. Rosina resistiu mais uma vez, até, pluft, perder a gestão do Patrimônio. Dessa vez, não aceitou ir para a saleta do fundo e optou pela aposentadoria. Triste. Nossa conterrânea, que é membro do Icomos – órgão internacional que congrega os melhores profissionais do mundo no setor –, alcançou a porta da rua em meio aos calores e preguiças de janeiro. Silêncio. Mas não pensem que ela vai ficar no tricô e na novela.
Rosina Parchen não é dada a narrativas personalistas. Migra para o centro de cena apenas debaixo de insistências. Conta sem mais que a mãe Lenira Oliva Alice, a dona Nina, dava aulas de admissão do ginásio para adultos no Colégio Estadual Professor Cleto. O pai, João Antônio, era representante de produtos farmacêuticos. Uma das joias que fez circular nessas bandas foram nada menos do que os sabonetes Phebo, o que lhe faz merecedor de nossos aplausos.
Difícil não relacionar a filha militante ao comerciante João. Ele viajava de Jeep pelos sertões do Paraná e de Santa Catarina. Registrava em cartas cada uma de suas andanças, de modo que Nina recebia mensagens em envelopes timbrados, enviadas das centenas de hospedarias onde o marido pernoitava. Quando chegava em casa, abastecia os seus de pequenas histórias sobre o país grande, belo e em construção que havia encontrado. Além dos relatos minuciosos – da mobília, da paisagem e dos tipos humanos –, dava bônus de curiosidades. “Me emocionei quando estive no hotel que Manoel Ribas mandou construir para si em Jacarezinho. Era exatamente como meu pai tinha descrito”, conta ela.
A culpa de Rosina ser quem é pode ser de seu João, mas também de dois de seus professores na UFPR – Key Imaguire e Ciro Lyra, que a despertaram para a luta da preservação. Ou do artista plástico Fernando Velloso, que lhe abriu as portas da Secretaria de Estado da Cultura, à qual se vinculou em 1980. Ao lado da também arquiteta Jussara Valentini, encontrou dois arquivos com quatro gavetas cada. O patrimônio estava reduzido a isso. Em pouco mais de uma década, fez contas de multiplicar. O Paraná teria não só a originalidade de ostentar legislações patrimoniais pioneiras, dos anos 1940 e 1950, mas também um setor moderno, com informações precisas sobre 200 bens tombados, defendidos à unha. Gestores públicos dos quatro cantos pediam para copiar o modelo. Rosina e sua turma mostravam como é que se faz. Não deixa de ser um consolo.
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