“Franja não fica bom para você, minha filha. Sua testa é curta. Trança também não recomendo. Só se for para ir à feira”, vaticina à cliente um sincero Joaquim José da Silva, 82 anos, 60 deles passados no comando das tesouras. Poucos o conhecem pelo nome – que por um triz não é igual ao do Tiradentes. Mas é só dizer “Baiano” para que alguém solte um “ah, o Baiano”, apontado como o cabeleireiro há mais tempo em atividade nas redondezas.
A estatística não é de todo confiável – basta reparar nas pequenas barbearias da cidade para flagrar algum veterano a bordo de uma reluzente cadeira com adornos prateados. Há heróis da resistência na Rua Riachuelo e na Carlos Cavalcanti. No Salão Arídio Costa da Avenida Iguaçu. No Salão Brasil do terminal do Capão Raso. Mas o título de vetusto não lhe faz falta. Difícil encontrar, passados dos 80, um barbeiro ou cabeleireiro tão, digamos, conservado como Baiano. “É da minha natureza. Minha mãe morreu com mais de 100 anos e só não viveu mais porque tomou mais Tetrex do que devia”, arremete ele, antes que se ouse suspeitar de que fez alguma intervenção estética. Mostra o braço, que não deixa mentir: “Tá vendo alguma ruga?” Coros de anjos respondem “não”.
O fato é que a carreira de craque em decoreba durou duas páginas, só
À juventude se some a elegância digna da Ilha da Fantasia – os ternos são da Vila Romana, com lenço vermelho na lapela e gravata estampada com Patolino e Pernalonga. É assim que se veste todos os dias para atender nunca menos do que 20 clientes no Expert do Shopping Barigui – seu emprego na última década. Segundo consta, faz sucesso junto à moçada montada com coques masculinos e barbas de lenhador, trabalhadores do salão. Ele entrega: “Vivem me pedindo conselhos”. Também querem saber “onde é que dói?” – foram, afinal, algo como 230 mil cortes de cabelo de 1956 até hoje. A resposta é NADA ficou bamba. Lavre-se como verdade.
O primeiro contato de Baiano com a profissão foi mais para Mazzaropi do que para Tim Burton. Nas roças de Bom Jesus da Lapa, às margens do Rio São Francisco, sua mãe, dona Petrolina Conceição, aparava a juba dos 11 filhos com podões, limas, esmerilos e, nos dias felizes, tesoura de roupa. Foi sua primeira professora. Os demais mestres conheceria na época em que os Silva davam duro nas lavouras de café do Norte do Paraná, por volta de 1948 – “quando tinha pé de jaracatiá no meio da rua”.
Mas o guri queria era ser topógrafo – sua cisma. Arrumou um bico. Foi quando – suspeita-se – provou pela primeira vez os degraus da fama: pequenino e tagarela, dizia, sem gaguejar, o nome dos municípios paranaenses: Londrina, Cambé, Rolândia, Lobato, Jaquapitã, Marialva, Maringá, Arapongas, Nova Esperança, Monte Castelo, Porto Rico... Ainda hoje é bom nisso e tem quem o desafie a repetir as 399 cidades. Um desses é o ex-prefeito Rafael Greca de Macedo. “Ele me aplaude toda vez”, informa Baiano.
O fato é que a carreira de craque em decoreba durou duas páginas, só. Apareceu um salão disposto a iniciá-lo no ofício – a Barbearia Francisco Martini, em Mandaguari, no Nortão. Depois surgiu um amigo, Paulino Mangini, para lhe ensinar as meias-cabeleiras-curtas, o corte de açougueiro e o pigmalião. Por fim, uma paixão – a ítalo-espanhola-pé-vermelho Adair, por quem caiu de amores e assim permanece. Em 5 de julho de 1964, o casal desembarcou em Curitiba, onde Baiano seria rei – precisamente na Rua Emiliano Perneta, ao lado da Igreja de Santo Estanislau, quase por 30 anos sede do Salão Baiano’s.
Antes da glória, bateu muito cartão. Cortou cabelo em salão de rodoviária. Fez serviço de graça. De vez em quando, atendia uns graúdos – como o empresário Paulo Pimentel; e gente santa feito a médica Zilda Arns. As habilidades ajudaram – assim como a Marly, ela mesma, aprendeu a fazer o “corte da pantera”, cheio de repiques, usado pela atriz Farrah Fawcett num seriado de tevê. Ganhou bom dinheiro. “Não sei como nem quando, só lembro que de repente tinha foto minha no Dino Almeida toda semana”.
Bem que tentou fazer fortuna longe das terras frias. O capítulo das suas andanças por São Paulo deixa em estado de excitação os que ainda lembram de Dener (1937-1978), o estilista. Se com dona Petrolina aprendeu a cortar; com Paulino aprendeu a cortar certo e com o Dener entendeu que não basta saber cortar, é preciso ter charme. “Deixe eu ver a largura de seu pulso”, brinca, ao exibir uma das lições aprendidas com o amigo famoso: a relação metafísica entre ossatura, porte e sensualidade.
Conheceram-se ao acaso – em eventos de noivas e de debutantes. Baiano reproduzia aqui o que ouvia do ídolo. Chegou a colocar modelos do Veridiana Noivas em desfile com carro aberto. Sob sua batuta, debutantes do Curitibano e do Santa Mônica ficaram mais cosmopolitas. Via Dener, tornou-se próximo de Chico Anysio, para citar um, mas, sobretudo, aprendeu que um cabelo podia dar um jeito na mais miserável das corcundas, na mais jeca das pisadas Alain Delon – aquela para dentro. “Um corte acertado reescreve um destino, deixar nascer uma outra pessoa. Vi muita gente se modificar depois de ajustar o penteado”, discursa, num dos poucos momentos em que não está ligado nas quatro pilhas.
Sua dicção, aliás, costuma ser atropelada pelo raciocínio veloz. Numa única frase, sem ponto ou vírgula, é capaz de falar de Marta Rocha, das marmitas que Adair lhe prepara, cantar (com voz linda) a marchinha de carnaval As águas vão rolar; e de canários. Uma salada, mas faz o maior sentido. Outra marca – nunca se furta de dar opinião. Um caso: não gostou daquela trancinha da Marcela Temer, o qual comenta seguido e um “deus-o-livre”; e acha Cristiane Torloni uma das mulheres mais deslumbrantes do país. Mas... “ficaria melhor se cortasse o cabelo comigo”, avisa, sem afetação.
Creiam, não há soberba em Baiano. No ramerrame ele é um retirante que espera a hora de ir para casa, no Alto da XV, para ficar no regaço de sua Adair, dos três filhos e netos e o bisneto. “Sonho com um mundo em que ninguém maltrate as pessoas e os animais. Amo o canto dos passarinhos. Eu os ouviria pela eternidade. Quer saber mais? Ponha aí que não se deve fazer tempestade em copo d’água, que cara feia é fome, que tristezas não pagam dívidas. E que eu amo o sol.”
Em tempo. Na mesa de Baiano no salão tem uma tesoura alemã de R$ 1,6 mil, um estojo vermelho, um pote de Bozzano, um surrado cofrinho de moedas com motivos infantis, seus diplomas, um pincel velho e a imagem de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.