| Foto: Felipe Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

São longos os dias da musicista Ingrid Müller Seraphim. A mulher cuja carreira atravessou mais da metade do século passado – ela começou a tocar piano aos 5 anos de idade – se levanta no mais tardar às sete da manhã. Ocupa-se de uma ou outra lida no seu amplo apartamento do Centro Cívico. Depois se rende: é dona do tempo, que dedica à música, seu amor sem pecado.

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Bem que tenta se distrair com outras graças, sem sucesso. Da janela do décimo andar vê as bandeiras hasteadas em frente ao Palácio Iguaçu, as batalhas travadas na Praça Nossa Senhora de Salete, o verde que impera por aquelas bandas da cidade. Enxerga, sobretudo, o canário Pio, seu mimo, numa grande gaiola rente à sacada. Ama os pássaros – e não lhe perguntem por quê. Por extensão, composições dedicadas às aves lhe interessam tanto quando Händel.

É capaz, por exemplo, de listar uma dezena de composições eruditas dedicadas ao tema. Quiz show. São de Vivaldi, Rameau, Couperin... tem o Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Faz essa madureza como se lembrasse as brincadeiras de menina. Numa quebra de contrato com sua fleuma germânica, permite-se imitações. Ri das notas tramadas pelos compositores, na tentativa insana de reproduzir rouxinóis e pintassilgos. Arrisca onomatopeias para mostrar como é La poule (“a galinha”), de Jean-Philippe Rameau.

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Nessas horas de devaneio doméstico, a sós com os pássaros imaginados, o piano e o cravo a arrastam para uma saleta ao lado – uma espécie de miniteatro particular. Tudo assistido por Pio, o canário rei. Naquele cantinho bachelardiano cultiva seu vasto e irretocável repertório renascentista e barroco, sempre sem alarde, de modo a não ignorar os pedidos da vizinha do andar de baixo, que tem lá os seus caprichos. Esse é o outono de sua vida.

Se a filha Elisabeth Prosser – instrumentista como a mãe – está por perto, tocam juntas. Alegria completa, em especial quando inventam – gurias – de fazer o tal concerto dos passarinhos.

Desde que se entende por gente, fazer música com outras pessoas é o destino de dona Ingrid

Desde que se entende por gente, fazer música com outras pessoas é o destino de dona Ingrid. Na infância e adolescência, formava conjuntos nas salas das casas onde viveu, o Hausmusik. Cresceu e se multiplicou na arte de juntar gente. Sob sua batuta se formaram incontáveis grupos de câmara, orquestras, corais, festivais. Boa parte das 35 Oficinas de Música de Curitiba. A Camerata Antiqua, com 43 anos de estrada, hoje instalada na Capela Santa Maria.

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Nem a aposentadoria e a retirada de cena, nem a viuvez do engenheiro Paulo Seraphim, há cinco anos, lhe puseram freios. Levam o dedo dela, e de Beth, os concertos mensais conhecidos como “Música na Igrejinha” – a Igreja Luterana de Cristo, na Inácio Lustosa. Acrescente-se o hábito jamais abandonado de convidar conhecidos para a acompanharem no culto dominical, sempre às 9, também na Igrejinha, tendo a matriarca à frente do órgão de tubo. E os intimistas duos matinais ou vespertinos em sua residência. Poucos sabem dessas sessões artísticas que competem com os aspiradores de pó que gritam no condomínio. “Tudo muito natural”, diz, sobre não parar de fazer música e de fazer música com quem quer que lhe cruze o caminho.

O legado de Ingrid Müller Seraphim – o nome por trás da música erudita no Paraná – não encontra opositores. É fato que, como todo criador, ela já se deparou com a barbárie da falta de reconhecimento, mas lhe bastou saber esperar. Alcançou. Foi só sumir nos rodapés da história um ou outro gestor cultural, menos iluminado, para que outro viesse atrás, com flores nos braços para dar à cravista, rendendo-se. Pudera.

Ingrid nunca compôs – ou nunca confessou tê-lo feito. Regeu muito pouco – em caso de urgência urgentíssima. Fez solos – inclusive na mocidade, junto à Orquestra Sinfônica Brasileira –, mas não é pelo que acredita ser lembrada. Sua marca? Fez-se uma agregadora, virtude difícil de ser reconhecida nesses tempos de “guinada subjetiva”, como define a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Todos querem ser lembrados como protagonistas. Formada nas lides do modernismo, ao contrário, sentia-se fadada a fazer da música um patrimônio de todos. Aprendeu da mãe, a multiartista Elza Weimar Müller; do primeiro professor, o pastor Karl Frank; do maestro Heitor Villa-Lobos, com quem teve aulas no Rio de Janeiro. Aprendeu fazendo. E cedendo espaço a quem quer que queira.

Em princípio, nos anos 1960, cedeu seus sábados à tarde. A casa da família Seraphim, no Ahú, se abria para interessados em duos, trios, quartetos. A mesa da cozinha ficava cheia de bolos e pães – um lanche sem fim. Estavam lá os Graf, os Brandão, alguns de seus ex-alunos da Escola de Belas Artes. Num crescente, as matinês extrapolaram a copa, o quintal, o muro, até chegar aos célebres encontros e festivais que dariam origem às Oficinas de Música, em 1983; aos concertos na Igreja Bom Jesus do Cabral, casca do ovo de onde nasceu, em 1974, a Camerata Antiqua de Curitiba. Eram cinco músicos. Viraram 40, com ala instrumental e vocal. Se antes barulhentos na casa de Ingrid, logo viraram uma balbúrdia federal ao terem de subir num ônibus fretado e sair, digamos, em missão.

As aventuras da Camerata Antiqua – até 2001 sob a custódia de Ingrid, sua fundadora, ao lado do maestro Roberto De Regina – pipocam no imaginário dos músicos participantes. Impossível esquecer as parcerias com Egberto Gismonti, com Sivuca. Desde o início, o propósito era que o grupo não poderia ser um fim em si mesmo. Se saíram dos quintais dos Seraphim, tinham também de sair de uma de suas primeiras sedes, o Solar do Barão. Dali a Camerata partia em peso, repetidas vezes, rumo às periferias, levando violino, violoncelo, viola, flautas, percussão – e vozes.

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Por periferia se entenda centros comunitários, capelinhas e colégios da imensa Cidade Industrial de Curitiba, a CIC, e suas mais de 80 vilas. Uma função. Além do coletivo – para carregar o maior número de gente possível –, era preciso uma Kombi para transportar o cravo, sem o qual não havia Camerata. Dá para imaginar o impacto do instrumento sendo desembarcado na Vila Nossa Senhora da Luz, na Santa Amélia ou no Caiuá. De outras levas, os limites do grupo se espraiavam para as indústrias instaladas nas franjas da capital. Lá tocava Paixão Segundo São Mateus, de Bach; O Messias, de Händel; Réquiem, de Mozart; Te Deum, de Luiz Álvares Pinto.

Ingrid bem lembra do empresário que caiu no choro ao ouvir um temperado repertório de oratórios de Natal. Da turma do chão de fábrica, que parava tudo ao som da sirene, para conhecer a Camerata. Das inscrições para as oficinas, vindas de lugares como o Amapá, da América Latina toda, de lugares de que mal ouvira falar. Essas lembranças lhe soam cada manhã, diante do cravo azul plantado na sala. Sem se render à emoção barata – só lhe resta acreditar que foi mesmo muito bom ter deixado a música – sua paixão – ganhar asas. Como os pássaros, por certo.