| Foto: Henry Milleo/Gazeta

Em 25 de agosto de 1938, uma nota com foto na página 8 da Gazeta do Povo anunciava que o Paraná ganhava sua primeira repórter. O nome dela era Carmen Lour, 20 anos e beleza de camafeu. A sofrível impressão mal deixa ler o que está escrito. Sabe-se – jornais ganhavam forma debaixo do vapor do chumbo fundido e à custa do suor dos linotipistas. Munidos de uma toalhinha no pescoço e garrafa de leite ao alcance da mão – para não morrerem secos –, ralavam mais que maquinista de Maria Fumaça.

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O esforço não foi em vão. Ainda que vaga e ilegível, a informação sobre Carmen Lour é ouro para pesquisadores. Uma mensagem na garrafa. Trinta anos atrás, seria lida como uma tolice de coluna social. Agora não mais. Há um esforço tamanho para escarafunchar as pequenas revoluções pontificadas por mulheres comuns – as escondidas e as apagadas – de modo a mostrar que não se resumiam à figura da mãe abnegada, com o avental todo sujo de ovo. As descobertas têm levado bons debates ao fogo. Nem tudo no mundo se decidiu nos banheiros dos homens, esses templos de camaradagem.

Ainda se sabe pouco sobre a repórter Carmen Lour. Nasceu numa família modesta, de oito filhos. O pai, um militar de origem francesa, é descrito como homem de espírito liberal, o que talvez justifique ter permitido o ingresso da filha no jornalismo, profissão glamourosa, mas masculina até a última lauda. Sem dizer que o expediente – quando noturno – terminava em bares de má fama, alvo fácil para atentar contra as reputações femininas. Driblar a língua comprida dos vizinhos devia ser uma lenha.

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“A gente dizia que ela nasceu antes do tempo”, conta a filha de Carmen, Vânia Wanderley, sobre a mulher que lia aos borbotões e tinha opiniões fortes. Morreu em 1984, aos 66 anos, aposentada como funcionária do INSS. Para surpresa, não comentava com a família sua ligeira passagem por uma redação. O recorte que a anunciava como a primeira repórter no estado veio à tona tardiamente, da parte de amigas e confidentes.

Há um esforço tamanho para escarafunchar as pequenas revoluções pontificadas por mulheres comuns

Ao recebê-lo, uma de suas irmãs mais novas – a pioneiríssima jogadora de basquete no Paraná Iverly Lour da Silva (foto), hoje com 83 anos, escreveu um texto de homenagem, publicou em livro caseiro (Enquanto espero...), emoldurando ali o pouco de que se tem notícia sobre a mulher que arrombou as portas da imprensa local, no fim da década de 1930. Em tempo – Iverly é um tipo incrível, que mostra a língua e deixa os caretas sem graça.

Naqueles idos, as matérias de jornal não eram assinadas – salvo os artigos – de modo que, por ora, não há como saber o que a culta Carmen Lour escreveu, nem por quantos expedientes tolerou a rotina de hospício praticada na imprensa. O que se pode dizer é que por um mês – ou um ano – ela pisou no esfumaçado ambiente de um “periódico”, ganhou pauta, conduziu entrevistas e escreveu reportagens a bordo do teclado de uma Remington, uma Erika ou uma Underwood. As gurias nem sequer podiam imaginar o que ela via e ouvia sentada em sua mesa da Móveis Cimo.

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Para se proteger do veneno alheio, as demais colaboradoras da imprensa – nunca chamadas de repórteres – deixavam suas colunas em envelopes, na recepção, assinadas com pseudônimo, afetações como “Clair de Lune”. Não davam mole. Cumpriam esse ritual de braço dado com suas mães, usadas como espantalhos contra cantadas. A cantora Dóris Monteiro era boa no truque, que dava mais ou menos certo.

A precaução valia também para as “graúdas”. São muitos os relatos de herdeiras de jornais que deixaram seu patrimônio – nada menos do que impressoras gigantes, verdadeiras máquinas de transformação social – sob custódia dos maridos entediados. Até que Katharine Graham, a “Cidadã Kate”, burlou a regra e fez do Washington Post um dos veículos de imprensa mais tinhosos do século 20. É outra história.

Até que mais algum recorte perdido prove o contrário, a primeira jornalista brasileira foi Eugênia Brandão, chamada a seu tempo de “a reportisa”. Em 1914, no melhor do estilo “profissão repórter”, ela se infiltrou num convento carioca e relatou para o jornal A rua as agruras de noviças candidatas à vida religiosa. Entre Eugênia carioca e Carmen paranaense se somam mais de duas décadas. E entre Carmen e Rosy de Sá Cardoso – a primeira a ser de fato registrada num jornal (O dia, em 1948) – foram mais dez anos. Demora.

Os índices saltaram na década de 1960. Não só as mulheres ganharam as redações como se tornaram tema da imprensa. Seus anseios eram assunto fixo na mítica revista Realidade, o que não raro despertava os demônios da censura. A edição número 10, por exemplo, foi recolhida nas bancas por mostrar um parto, em detalhes, e uma pesquisa sobre o que elas pensavam a respeito de ser mãe solteira, pílula etc. Nada mais natural que empregar mais e mais repórteres, talhadas para entender a semiótica das minissaias. A propósito, dados da pesquisa Perfil do jornalista brasileiro, coordenada por Jacques Mick e Samuel Lima, informam que as mulheres hoje representam 63% das redações. A reviravolta vale para outras profissões, mas, em se tratando da imprensa, o sabor é morango com chocolate.

Ser jornalista era reivindicar para si o direito não só de rasgar o verbo, mas de torná-lo público. Registros de meados do século 19 mostram que as mulheres se viam condenadas à chamada “literatura privada” – seus diários. Durante décadas, esses escritos foram parar nos baús familiares, sendo tratados como relíquias da vovó. Custaram a ser lidos pelo que são – relatos de desejos e exercícios de inteligência. É provável que a publicação de Minha Vida de menina, de Helena Morley, em 1942, tenha acendido o fósforo que causou a chama.

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Um dos bons estudos que trouxeram à luz esses arquivos secretos está no soberbo Álbum de Leitura – memórias de vida, histórias de leitoras (2003), da pesquisadora mineira Lilian de Lacerda – uma galeria de Annas, Marias e Adélias desconhecidas. Deve-se lembrar da editora Mulheres – pela qual a catarinense Zahidé Muzart lançou fac-símiles de muitos desses escritos à mão, escondidos entre as cestas de bordados. E tem a Ecléa Bosi, claro, porta-voz de operárias e de velhas. Vai longe. Ponha-se aí, por favor, a Iverly, que tirou da sombra a Carmen, de quem até ontem nada sabíamos. Eis a roda.