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 | Foto: Ivonaldo Alexandre/Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre/Arte: Felipe Lima

A pianista Salete Chia­­­mulera não sabe dizer ao certo o dia em que – como se diz – "deu de se expressar", deixando o mundo em babas. Pode ter sido na Polônia, quando pasmou a audiência ao tirar os sapatos antes de tocar num reluzente Steinway & Sounds, o piano que sonhou. Ou em 2007, ao convidar meio milhão de amigos para uma feijoada e a servir tocando 50 peças de Villa-Lobos, sem parar – das primeiras horas da manhã ao cair da noite. Foi um recital-dia, digno de virar programa do Ministério da Saúde.

Tudo indica, porém, que Salete é Salete desde pequenininha, pois só com muito treino alguém conseguiria virar o mundo do avesso ao mesmo tempo em que arrancar as "Bachianas" do teclado. Ela é uma adorável levada da breca. Escute essa.

Em 2008, disposta a abalar a pasmaceira dos cosmos, criou o programa Haus Musik, ideia tão simples quanto arrebatadora. É a cara da dona. Já foi apresentada num congresso da China, mas surgiu nas barrancas do Barigui, onde Salete vive com o marido Osmar Böhler e quatro filhos, numa livre tradução dos Von Trapp, de A noviça rebelde.

Às falas. Salete convoca um pequeno grupo de músicos – seus alunos nas Belas Artes – e se manda para a casa de uma família. Ali, entre o sofá e a mesa de centro, promove um recital. O repertório vem acompanhado de um programa ilustrado com fotos dos anfitriões, para que não esqueçam o dia em que a sala de estar virou uma sucursal do Scala de Milão.

O encontro, não raro, acaba em lágrimas, bolinhos e duetos do seu João com os solistas. As palmas assustam os cachorros, mas tudo bem. Quando os recitalistas se vão, fica a certeza de que aquelas quatro paredes nunca mais serão as mesmas. Nem o apito da panela de pressão há de apagar a lembrança de Brahms e Chopin trepidando a janela da cozinha.

Em visita a Salete entendi por que essa história de arte em domicílio só poderia ser obra dela. A mulher é família até o último solfejo. Ela adorava sim ser a famosa pianista descalça, mas gostou muito mais de ser a mãe de muitos filhos. No frigir dos ovos, acabou fazendo da rotina doméstica uma espécie de eterna temporada da Sinfônica de Berlim. Não duvidem.

Boa parte da convivência dos Chiamulera-Böhler não se dá na casa grande, mas num puxadinho de madeira convertido num auditório. Tudo tamanho Cohab. Como o gigantesco piano de cauda foi colocado ali é um mistério para a engenharia.

A filharada é continuamente convocada para ouvir Schumann ou o prato do dia. Nem sempre de bom grado – coisas da idade, né. Uma revista em quadrinhos encomendada pela mamma mostra a "família Tilinda", como ela chama os seus, amarrada às cadeiras enquanto SC toca. Um sarro. A propósito, a turminha de Salete tem uma banda de rock. Acontece.

Na saideira, a artista me mostrou sua saleta de leitura – a Biblioteca Thomaszeck – em Móveis Cimo. O recinto guarda volumes e volumes de escritos da pianista, todos encadernados. É o que há: pode-se encontrar nos livros de registros de uma dor de garganta dos pequenos a ponderações sobre um pensamento de Lizst. Que tal: "O palco é o melhor lugar para se mostrar. E também para se esconder."

Entre os especialistas, esses manuscritos anárquicos – praticados por centenas de artistas ao longo dos séculos – são chamados de commonplace books, algo como livros de lugares comuns. Viraram objetos de desejo, pois permitem saber o que pensavam seus autores nas horas vadias – justo aquelas passadas dentro de casa.

Adianto que as anotações de Salete, em letra graúda, tratam da teologia de Teilhard de Chardin, da filosofia de Hanna Arendt, do padre Penalva, do cotidiano, de Osmar e de Jesus – "meu sócio". Quem porventura ler saberá que existiu em Curitiba uma pianista e mãe de filhos. Ela tocava sem calçados. E curtia fazer concertos na casa dos vizinhos. Bravo!

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