O historiador José dos Santos de Abreu, 49 anos, fazia faculdade quando assistiu ao documentário Os 11 de Curitiba – todos nós, de Valêncio Xavier. Nunca mais foi o mesmo. Era já um bom entendedor de ditadura militar, mas o filme lhe apontava a porta de um quarto escuro, onde encontraria fatos que mal tinham saído dos rodapés. Sem falar na emoção da cena final, ao som de ex-presas políticas cantando Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Explode coração – ou pelo menos o coração do Abreu, que ficou enterrado na curva desse rio.
De piá, era vidrado em todo e qualquer assunto sobre o golpe de 1964. Na formatura do ensino fundamental, sua turma esgoelou bonito Pra não dizer que não falei das flores. Aos 17, devorou Lamarca, o capitão da guerrilha, de Emiliano José e Oldack de Miranda. Pouco tempo depois, só faltou se alistar como voluntário e sair à cata de desaparecidos políticos para o Projeto Brasil: nunca mais, um dos fascínios de sua mocidade. Mas quis o destino que parasse por aí. Deixou os estudos, casou, teve filhos, perambulou por cidades diferentes. “Me tornei gerente de loja de sapatos”, gosta de resumir o homem que provou da vida proletária antes de nadar de braçadas rumo ao mundo dos estudos.
Estava escrito que seria assim. Filho de ilhéus portugueses, José de Abreu cresceu atrás de um balcão na Vila Carrão, em São Paulo. Foi lá, no porão do comércio, que descobriu um dos maiores prazeres reservados a um menino do seu tempo: sujar as mãos de tinta nas páginas despedaçadas de jornal, ali deixadas para embalar bananas e forrar gaiolas de canários. Pois encontrou o que gostaria de fazer pelo resto dos seus dias: investigar fatos perdidos.
Curitiba ganhou o status de cemitério de direitistas histéricos que trancafiavam pais de alunos num porão insalubre da Polícia Federal
O encontro do historiador com os fatos narrados em Os 11 de Curitiba... acendeu a brasa dormida. Não venderia mais sapatos a ninguém. Tinha perguntas demais a responder – e quem viu o “vídeo” do Valêncio sabe do que se trata. Entre 17 e 18 de março de 1978, numa Curitiba cheirando a guardado, 11 membros de dois centros alternativos de educação infantil – a Oficina e a Oca – foram presos pela Polícia Federal, acusados de ensinar comunismo para pimpolhos entre 1 e 6 anos de idade. Como as escolinhas funcionavam em regime de cooperativas, os sócios eram também fundadores, professores e pais dos alunos. Alguns deles ganhavam seu pão como sociólogos, jornalistas e advogados.
Os membros das cooperativas criaram tanto a Oficina – em 1973 – como sua dissidência mais à esquerda, a Oca – de 1978 – para fugir aos ditames do ensino que obrigava cadeiras como Educação Moral e Cívica. Eram ilustrados. Liam sobre Escola de Summerhill e acreditavam na teoria da “liberdade sem medo”, então uma coqueluche. Tinham juízo, mas uma leva de doidos varridos alinhados em torno da polícia política – Dops, DOI-Codi – entenderam que não e partiram para o ataque, dando origem ao episódio que seria cômico, não fosse trágico.
Os “11” eram Bernadete Sá Brito, Paulo Sá Brito, Lígia Cardieri Mendonça, Sílvia Pires Mendonça, Suely Atem, Reinoldo Atem, Léo Kessel, Luiz Manfredini, Ana Ribeiro Lange, o recém-falecido Edésio Passos e o homem de imprensa e da literatura Walmor Marcelino, a quem a repressão se referia como a “puta velha”, num sincero reconhecimento à extensa folha corrida no combate à ditadura. Ele, sozinho, é um longa-metragem – estrelado pelo Harvey Keitel, claro.
Os Brito, Mendonça, Atem, etc, na maioria, tinham sido fichados e ficavam de cabelo em pé quando viam uma Veraneio por perto. Eram “sambados” – Paulo e Bernadete, por exemplo, receberam, à época um cartão de Natal nada fofo enviado pelo CCC – o Comando de Caça aos Comunistas, ilegal, mas que agia sem pedir licença. Um ano antes, seis pessoas ligadas às escolinhas apareceram numa lista dos comunistas infiltrados no serviço público. Os motivos, “verdadeiros atentados à segurança nacional”, incluíam ser assinante do jornal alternativo Movimento ou estimular as pessoas a escreverem nas saudosas notas de um cruzeiro que queriam o fim da ditadura.
Mal sabiam, inocentes, que nos bastidores, ter filhos matriculados na Oficina ou na Oca funcionava como uma credencial para entrar na lista de inimigos da pátria. Os arapongas começaram a sondar as escolinhas em 1977. Antes de escolas ganharem um lacre na porta, seus membros já eram candidatos a serem enrolados numa lona de caminhão e virar comida de peixe. Nem na Oca nem na Oficina havia madureza de ensino religioso ou aulão de véspera sobre símbolos da pátria. Foi o fio da suspeita. Sobre esse pequeno grupo pesava a acusação de terem criado instituições de “fachada” para derrubar o governo militar, além de ensinarem materialismo, “uma visão dialética do mundo” (sic) e, horror dos horrores, falarem de como as pessoas vêm ao mundo, também conhecido como sexo.
Os “11”, por sua vez, só queriam um sistema de ensino em dimensões humanas – bem longe dos colegiões que surgiam em cada esquina – para acolher seus filhos e filhos dos seus amigos. Produziam material didático próprio. Flertavam com as teorias de Piaget – de cujo paradeiro, como era de se esperar, alguns dos interrogadores na prisão queriam porque queriam saber: “E esse Piaget, onde está?”, ouviu uma das detidas.
Quem acompanhava a pataquada toda pelos jornais – e assunto não faltou na semana em que os “11” passaram atrás das grades – restava fazer piada. Dizia-se que na Oficina e na Oca a criançada lia muito Chapeuzinho Vermelho. O nome da operação da Polícia Federal – “Pequeno Príncipe” – também rendia risinhos no cafezinho da repartição. Devia se chamar “Pequeno Lenine”, dizia-se.
Embora não seja o único a pesquisar assunto, José de Abreu soma 12 anos de escavações atrás de informes sobre o episódio dos “11 de Curitiba”
Mas o melhor de tudo foi a repercussão em escala planetária, o que trouxe uma solene dor de cabeça aos moradores dos palácios e dos quartéis. A Anistia Internacional, em Londres, recebeu 8 mil telegramas de protesto. Patrícia Feeney, representante do órgão, se abalou até a distante capital do Paraná, para botar o dedo no inquérito 38/78. O episódio chegou aos ouvidos do presidente americano Jimmy Carter e do papa Paulo VI – de quem a ditadura se pelava. Atrás do fato, legiões de repórteres, todos com a caneta em riste para registrar o ridículo da situação.
Curitiba ganhou o status de cemitério de direitistas histéricos que trancafiavam pais de alunos num porão insalubre da Polícia Federal (a delegacia ficava na Rua Ubaldino do Amaral, entre o estádio do Coxa e a casa do Dalton Trevisan – foto). Rendeu editorial do Jornal do Brasil. Os principais cronistas brasileiros de então não deixaram passar: Carlos Drummond de Andrade e Carlos Novaes dedicaram saborosas linhas às escolinhas de comunismo de “Curitiba, a estranha”. Itamar Franco, Armando Falcão, Raimundo Faoro estrilaram.
Vale lembrar que a Oficina (nascida na Vila Oficinas) e a Oca (instalada no Estádio do Colorado) não foram as primeiras escolas livres a ganhar mordaça. Em 1966, um pequeno colégio chamado, adivinhem, “Pequeno Príncipe”, também foi fechado na cidade, debaixo da mesma acusação. Dessa vez, quem se divertiu foi Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, em sua imbatível coluna Febeapá, que em tradução literal significa “Festival de Besteiras que Assola o País”.
Embora não seja o único a pesquisar assunto, José de Abreu soma 12 anos de escavações atrás de informes sobre o episódio dos “11 de Curitiba”. Nesse tempo, conseguiu depoimentos não só de pais como de agentes da Polícia Federal e até de gente da Dops. Falou com Walmor, Edésio, Valêncio e o historiador Carlos Antunes, para citar alguns dos que envolvidos que não estão mais por aqui, uma pena.
Ano passado, defendeu uma dissertação de mestrado na UFPR, a ser publicada em livro até o final de outubro. Deve causar. Consegue uma proeza – mostrar o pandemônio de desmandos que se escondia por detrás do fechamento da Oficina e da Oca. Resgata obscuros sequestros ocorridos ao mesmo tempo, como o da professora e jornalista Juracilda Veiga. Põe a nervos expostos a atuação de figuras sinistras, hoje nome de ruas. E a ação gloriosa da Comissão de Justiça e Paz, ligada à Igreja Católica – pressionada a não se manifestar, até a última gota de água benta. Gente como Wilmar D’Angelis desobedeceu.
É história que vai longe – tão cedo o menino Abreu não há de parar de juntar jornais despedaçados, que bom.
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