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O semiólogo norte-americano Steven Johnson defende que invenções como o gelo, o vidro e a penicilina foram mais decisivas para o mundo do que a maioria das revoluções e batalhas. Pois ele bem que podia acrescentar um item a sua lista – a DKW-Vemag, Vemaguet para os íntimos, carro que entre 1958 e 1967 fez a alegria de pelo menos 55,6 mil brasileiros que puderam comprar uma.

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Em caso de dúvida, sugiro que Steven converse com o eletricista aposentado Nicolau Alves, morador do Bacacheri e feliz proprietário de um modelo 1964. Juntos, condutor e veículo completaram bodas de ouro, fidelíssimos, acolitados nesse tempo todo por dois mecânicos – o Schariff da Vila Guaíra e o Davi ali de perto –, sem os quais essa história não teria final feliz.

A Vemaguet do Nicolau é uma teteia, tratada na cera diluída em água. Bem posta em fru-frus, segue equipada de ventarolas e “cílios” no farol, uma verdadeira gata de sofá. Em cor verde-quartel, é a primeira da linha “honesta”, como se dizia, por não trazer as indiscretas portas com abertura ao contrário, causadoras de constrangimento para as mulheres de saia e de excitação para os olhudos. “De-cha-vê”, apelidaram-na.

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Quem acha curitibano antipático, saiba que nossa gente se desarma diante da DKW do Nicolau

Pois o tempo passou e esse fato é que torna a Vemaguet uma invenção, sei lá, tão importante quanto a lâmpada. Analise: trata-se de uma versão mais barata da nave espacial, a salvo dos dissabores da gravidade e dos riscos de uma base explodir em Cabo Canaveral. Gênios como Da Vinci adorariam ter circulado numa. Nicolau é prova da grandiloquência dessa criação humana. Quando se põe a bordo de sua DKW velhinha em folha, ele se vê a salvo da tirania da passagem das horas. Está no passado, no presente e, pelo que conta, o carango vai levá-lo ao futuro – o futuro mais próximo: o “Gaúcho”, como é chamado, completa 88 anos no próximo dia 6.

Nicolau Alves deixou Santa Cruz do Sul e se mudou para Curitiba assim que atingiu a maioridade. Hospedou-se no Hotel Marabá e logo conheceu Ivonete, a mulher que amou, mãe de seus três filhos. Empregou-se na prestigiada “Irmãos Strobel” – empresa que lhe permitiu projetar fontes luminosas nas praças Rui Barbosa e Espanha, além da iluminação do Passeio Público. Com seus ganhos de especialista em alta tensão, comprou um terreno “alto e seco”, de frente para a linha do trem, uma de suas paixões.

Ali ergueu uma grande casa, com estância ao fundo. Botou dois anões com camisa do Grêmio no jardim – compondo com as hortênsias. Plantou pés de bergamota, romã, café e caqui, mas sobretudo um pinheiro-do-paraná, hoje um gigante. Depois comprou uma Vemaguet-64. “Ainda posso ver a farra das crianças quando cheguei com a novidade”, recorda, sobre quando a vida parecia um desenho do Alceu Penna. Viajaram terras. O odômetro travou em 67.151 quilômetros rodados, um troco perto do que a família Alves de fato “singrou” pelas estradas do Sul.

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Há dois anos, morreram Ivonete e o filho mais novo. A família está sempre por perto – um neto usa a sala para treinar bateria – mas Nicolau sabe que um capítulo se encerrou. A faixa na frente informa que a propriedade está à venda. Talvez se erga ali um prédio de 17 andares, levando as romãs, os anões e, se prefeitura piscar, a araucária. O cenário lembra aquele lindo livro de Paulo Venturelli – Paisagem com menino e cachorro. Ficaria algo como Paisagem com Nicolau, o vira-lata Totó e a Vemaguet-64. Seu plano? Embarcar o cão e se mandar de DKW para Rio Pardo, perto de sua Santa Cruz, no Rio Grande. “Lá faz sol, todos são velhos e se divertem falando mal da vida dos outros. Vou entrar na roda”.

Enquanto isso, faz seus adeuses. Todos os dias pisa fundo para dar partida na DKW e se dirige para algum canto da cidade. A caixa é seca. O barulho lembra uma Lambretta. Vida que segue, põe uma K7 do Abba no toca-fitas, seguido de um Teixeirinha bem temperado. Vencida a subida, engata uma quarta e cruza, glorioso, a Avenida Nossa Senhora da Luz. Na rua, só faltam aplaudi-lo. Chupa Divesa. Ao estacionar, provoca comichões coletivos. “Todo mundo quer passar a mão nela”. O povo senta, coquete, ao volante. Pergunta das fotos p&b no painel. Pede licença para fuçar o monóculo preso ao cinzeiro. “O senhor carrega noivas? Ah, não”. Tudo termina em selfies.

Quem acha curitibano antipático, saiba que nossa gente se desarma diante da DKW do Nicolau. Gurias com cara de tédio se permitem um sorriso de debutante. “Que te-sou-ro de Vemaguet grita um, ao despachar um tapinha na lataria”. Homens de cabeça branca, batata, sempre se abrem em 32 dentes. “Meu pai tinha uma igual – vivia deixando a gente na mão (sic). É motor de três cilindros?”, diz outro, no sinaleiro, ao fazer o gesto revolucionário de abrir a janela do próprio veículo. “Qual a marca desse carro?”, pergunta o motoqueiro que faltou às aulas sobre os “anos JK”.

“Faça o preço”, tentam-lhe os cheios da gaita, diante da joinha. Nem pensar. Sem a Vemaguet, restaria o roupão, o controle-remoto e as lágrimas. Para não dizer que nada abala a saga desse viajante solitário, há de se confidenciar que algo lhe faz franzir o cenho – “essa tal de Área Calma me dá medo”. Sabe como é, às vezes Nicolau se descuida na contagem das horas e dos quilômetros. Foi assim que chegou até aqui.

”Lembro como se fosse hoje o dia em que cheguei com a Vemaguete, ‘quase zero’, em 1964. Ainda posso ver a alegria das crianças”, conta Nicolau Alves.
“Viajamos muito. Íamos para Florianópolis, para Santa Cruz do Sul. Uma viagem dessa levava 1,6 mil quilômetros. Nunca vou saber o quanto esse carro rodou”.
”A gente deitava o banco e as crianças dormiam atrás. Tive outros carros. Tive um Simca. Mas esse me marcou mais. Tem quem peça para comprar. Nem pensar”.
“Comprei esse terreno porque fica de frente para a linha do trem. Cheguei aqui de trem. Me atrai. Dizem que aqui vai sair um terreno de 17 andares. E eu me vou - para Rio Pardo, perto de Santa Cruz. Lá tem sol. Tem velhos como eu. Eles falam mal de todo mundo. Vou entrar na roda.”
“Quando o pessoal vê o carro, pede para sentar no banco do motorista. Acho que é para imaginar como é que era dirigir um carro desses.”
”Ponho a fita K7 e sigo adiante.” No toca-fitas, Nicolau ouve Abba, mas também o conterrâneo Teixeirinha.
”É sagrado. Todo dia pego o carro e vou para algum canto da cidade. Gosto do Parque do Bacacheri. Estaciono lá e tiro uma soneca. Os guardas ficam doidos, dizem que é perigoso, mas que nada. Logo chega gente pedindo para olhar o carro por dentro, tirar uma foto.”
”Eu trabalhava com eletricidade. Fiz a fonte luminosa das praças Rui Barbosa e Espanha. Fiz toda a iluminação do Passeio Público.”
”Ando preocupado com a Área Calma. Sabe como é que é, às vezes a gente se descuida. Se tem motorista, o carro passa de 40 quilômetros por hora.”
”As pessoas me cumprimentam, acenam para mim, ficam felizes.”