"Toca Mercedita", pede a paranaense Olga. "É minha guarânia preferida", avisa, ao listar outras tantas canções que aprendeu desde o dia em que conheceu Ramón Romero Rojas, há 40 anos, numa festinha regada a gasosa, vaca-preta e, suspeito, cuba-libre. Ela estudava Letras. Ele, Medicina. O pai estranhou que a guria tivesse vindo estudar em Curitiba e aqui sentisse palpitações por um intercambista paraguaio. "Tive de ir até Irati pedir autorização para namorá-la", conta o cardiologista.
Não se largaram mais. O Paraguai ganhou uma embaixadora. Olga discorre a mil rotações por minuto sobre as maravilhas do idioma guarani, elogia a sogra paraguaia e tece panegíricos ao povo com o qual Ramón lhe presenteou. "Quer que eu resuma? É uma gente amiga, que põe a cadeira de palha na calçada para conversar", diz, enquanto os guitarristas se desculpam. Em vez da guarânia, arrancam "ais" ao som do bolero Frenesi.
Os pedidos são muitos a Casa Paraguaya está lotada. É lugar sem luxo, parecido a um barracão de paróquia, compensado pela paisagem do Butiatuvinha, periferia de Santa Felicidade. A associação surgiu em meados da década de 1970, mas só conseguiu sede nos anos em que Maurício Fruet esteve na prefeitura. Não foi bolinho.
Para ganhar o terreno, um escampado de 2 mil metros quadrados, outro cardiologista, o dissidente político Heriberto Cano Arias, teve de usar do jeitinho brasileiro. Pediu a um paciente, que trabalhava com o prefeito, que tirasse a papelada da doação da parte de baixo da pilha de processos municipais. Deu certo.
Paredes erguidas, as Virgens de Caacupé e de Assunção foram entronizadas. São imagens pequeninas, de perucas, obedecendo à tradição barroca. Dividem um tablado com as bandeiras do Brasil e do Paraguai. É o que basta para dizer que o lugar é sagrado, mas também uma zona franca, con permiso para a luxúria dos churrascos ao som do infindável refrão de Galopeira. Ah, também se pode assistir aos jogos do Olimpia e o Cerro Porteño. Debaixo do manto das duas padroeiras, quem sabe...
Só não se pode falar ali da desinibida Larissa Riquelme as mujeres a detestam. Nem fazer ato político uma das cláusulas pétreas da Casa Paraguaya. Doutor Heriberto cumpre à risca. Se o assunto são os ditadores que atazanaram seu país, leva o colóquio para o quintal. Foi o que fez comigo, carregando como testemunha outro médico, Pascoal Viera. São septuagenários, divertidos, nacionalistas, cada um à sua moda. "Ele é um colorado. Está moço deste jeito porque foi criado no leite de cabra", brinca Heriberto, antes de destilar suas mágoas. O sangue lhe ferve ao falar dos territórios perdidos para Argentina, Bolívia e Brasil. "Você sabia que qualquer paraguaio sabe contar a saga dos 4 mil meninos mortos na guerra com vocês em 1869?"
Aproveita o embalo para desancar o Tratado de Itaipu, abrindo uma compota de números que deixariam tonta até a Míriam Leitão. Mas deixa estar. É domingo, e os paraguaios querem é puxar as cadeiras. O empresário Esteban Garcete Fornells toma a palavra e conta a saga de sua família, desde 1911. Os operários veteranos Roberto Marecos e Justino Legal falam do Brasil que ajudaram a fazer com as mãos, desde a chegada, na década de 1960. Dá para ouvi-los e ao mesmo tempo torcer para que alguém peça Recuerdos de Yparai, mas sem chance. Os votos populares são para Índia, de Ortiz Ferrero e Assunción Flores, quase um hino nacional. "Quando eu for embora para bem distante..." é cantada baixinho enquanto o arroz-doce começa a ser servido, em copaços.
Os paraguaios são errantes. Diz-se haver 2 milhões deles na Argentina; 200 mil na Espanha... Dados do Censo de 2010 mostram que em Curitiba somam 955. Eles duvidam e fazem pouco seriam 1,5 mil. Daí ter sempre uma cara diferente na área. Quem chega, senta-se em roda, tenha ou não diploma. Seja ou não paraguaio. Regras da casa. Eis a graça.
Saí de lá fazendo meu inventário paraguaio. Lembrei do amigo de infância apelidado de Parágua. Do ar condicionado da loja Mona Lisa em Ciudad del Este, um céu. Do mês que passei com os brasiguaios, em 1989. Da leitura de Mar Paraguayo, de Wilson Bueno. De ser apresentado a Roa Bastos por Josely Vianna Baptista. Do que me contou sobre sua gente a ex-aluna Elisa Ramirez. Da surpresa em saber da existência de tantos poetas nascidos num país tão pequeno.
Agora entendo: a poesia é a arte dos exilados.