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José Carlos Fernandes

Dia de domingo na Casa Paraguaya

 | Foto: James Helmfelt – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: James Helmfelt – Arte: Felipe Lima)

"Toca Mercedita", pede a paranaense Olga. "É minha guarânia preferida", avisa, ao listar outras tantas canções que aprendeu desde o dia em que conheceu Ramón Romero Rojas, há 40 anos, numa festinha regada a gasosa, vaca-preta e, suspeito, cuba-libre. Ela estudava Letras. Ele, Medicina. O pai estranhou que a guria tivesse vindo estudar em Curitiba e aqui sentisse palpitações por um intercambista paraguaio. "Tive de ir até Irati pedir autorização para namorá-la", conta o cardiologista.

Não se largaram mais. O Paraguai ganhou uma embaixadora. Olga discorre a mil rotações por minuto sobre as maravilhas do idioma guarani, elogia a sogra paraguaia e tece panegíricos ao povo com o qual Ramón lhe presenteou. "Quer que eu resuma? É uma gente amiga, que põe a cadeira de palha na calçada para conversar", diz, enquanto os guitarristas se desculpam. Em vez da guarânia, arrancam "ais" ao som do bolero Frenesi.

Os pedidos são muitos – a Casa Paraguaya está lotada. É lugar sem luxo, parecido a um barracão de paróquia, compensado pela paisagem do Butiatuvinha, periferia de Santa Felicidade. A associação surgiu em meados da década de 1970, mas só conseguiu sede nos anos em que Maurício Fruet esteve na prefeitura. Não foi bolinho.

Para ganhar o terreno, um escampado de 2 mil metros quadrados, outro cardiologista, o dissidente político Heriberto Cano Arias, teve de usar do jeitinho brasileiro. Pediu a um paciente, que trabalhava com o prefeito, que tirasse a papelada da doação da parte de baixo da pilha de processos municipais. Deu certo.

Paredes erguidas, as Virgens de Caacupé e de Assunção foram entronizadas. São imagens pequeninas, de perucas, obedecendo à tradição barroca. Dividem um tablado com as bandeiras do Brasil e do Paraguai. É o que basta para dizer que o lugar é sagrado, mas também uma zona franca, con permiso para a luxúria dos churrascos ao som do infindável refrão de Galopeira. Ah, também se pode assistir aos jogos do Olimpia e o Cerro Porteño. Debaixo do manto das duas padroeiras, quem sabe...

Só não se pode falar ali da desinibida Larissa Riquelme – as mujeres a detestam. Nem fazer ato político – uma das cláusulas pétreas da Casa Paraguaya. Doutor Heriberto cumpre à risca. Se o assunto são os ditadores que atazanaram seu país, leva o colóquio para o quintal. Foi o que fez comigo, carregando como testemunha outro médico, Pascoal Viera. São septuagenários, divertidos, nacionalistas, cada um à sua moda. "Ele é um colorado. Está moço deste jeito porque foi criado no leite de cabra", brinca Heriberto, antes de destilar suas mágoas. O sangue lhe ferve ao falar dos territórios perdidos para Argentina, Bolívia e Brasil. "Você sabia que qualquer paraguaio sabe contar a saga dos 4 mil meninos mortos na guerra com vocês em 1869?"

Aproveita o embalo para desancar o Tratado de Itaipu, abrindo uma compota de números que deixariam tonta até a Míriam Leitão. Mas deixa estar. É domingo, e os paraguaios querem é puxar as cadeiras. O empresário Esteban Garcete Fornells toma a palavra e conta a saga de sua família, desde 1911. Os operários veteranos Roberto Marecos e Justino Legal falam do Brasil que ajudaram a fazer com as mãos, desde a chegada, na década de 1960. Dá para ouvi-los e ao mesmo tempo torcer para que alguém peça Recuerdos de Yparai, mas sem chance. Os votos populares são para Índia, de Ortiz Ferrero e Assunción Flores, quase um hino nacional. "Quando eu for embora para bem distante..." é cantada baixinho enquanto o arroz-doce começa a ser servido, em copaços.

Os paraguaios são errantes. Diz-se haver 2 milhões deles na Argentina; 200 mil na Espanha... Dados do Censo de 2010 mostram que em Curitiba somam 955. Eles duvidam e fazem pouco – seriam 1,5 mil. Daí ter sempre uma cara diferente na área. Quem chega, senta-se em roda, tenha ou não diploma. Seja ou não paraguaio. Regras da casa. Eis a graça.

Saí de lá fazendo meu inventário paraguaio. Lembrei do amigo de infância apelidado de Parágua. Do ar condicionado da loja Mona Lisa – em Ciudad del Este, um céu. Do mês que passei com os brasiguaios, em 1989. Da leitura de Mar Paraguayo, de Wilson Bueno. De ser apresentado a Roa Bastos por Josely Vianna Baptista. Do que me contou sobre sua gente a ex-aluna Elisa Ramirez. Da surpresa em saber da existência de tantos poetas nascidos num país tão pequeno.

Agora entendo: a poesia é a arte dos exilados.

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