Há pouco mais de um mês, o brasiliense Stevan Gomes Cerqueira Filho, 39 anos, deu de exercitar a observação. Uma arte. Descobriu que gosta de “botar o olho”. Que observar não tem contraindicações. Que não é preciso manual. Que bisbilhotar não é crime. Além do prazer em “esticar a vista”, o observante S.G.C.F encontrou o lugar ideal para praticar esse ofício divino (“E Deus viu que era bom”, Gênesis 1). Ao caso.
De manhã até o início da tarde, Stevan – um tipo brasileiro, de pele morena e olhos tristes – trabalha no guarda-volumes para moradores em situação de vulnerabilidade social, serviço criado pela prefeitura na Rua Doutor Faivre, 1.212. Chamam o posto de “Vagão”. Funciona assim: o pessoal que vive no relento chega com suas sacolas, colchões e cobertores. Pede uma vaga no armário, ao que o atendente abre um gigantesco saco branco de juta e ajuda o interessado a guardar seus pertences, um a um, sem esboçar desprezo – eis a regra. Fim da tarde, os donos voltam para buscar seu “galo”, bagagem, na gíria da rua, e se dirigem para o abrigo das marquises. Finda o expediente.
Stevan se enxerga nos mendigos que atende ao balcão
Enquanto ensaca, Stevan repara nos itens deixados pelos mendicantes – as fotos de família, cartas, documentos, peças puídas, sapatos furados, alimentos vencidos. Nada escapa. Quer decifrar quem é a pessoa escondida por trás de tanta calça, camisa e tênis doados por terceiros. Cada guardado desenha o mapa da vida do outro. No ritmo em que a coisa vai, o atendente não demora a formular uma sociologia da miséria extrema. Inteligência para tanto não lhe falta.
Há de descobrir, por exemplo, que ricos e miseráveis, não importa, deixam tudo para trás, menos o que pode lhes tirar, digamos, o oxigênio. Sabe aquela perguntinha de diário de moças – o que você levaria para uma ilha deserta?”. Pois é. No magnífico O último leitor, o argentino Ricardo Piglia conta Che Guevara, acuado na Selva Boliviana, em 1967, desfez-se de tudo, menos de uma espécie de cordão de couro no qual amarrava livros à cintura. Há inclusive uma foto dele no alto de uma árvore, lendo, alheio à morte lhe soprando nas orelhas.
O publischer Otávio Frias Filho, no subestimado Queda livre – ensaios de risco, relata algo parecido. Agnóstico convicto, testou a si mesmo fazendo o Caminho de Santiago de Compostela, só para ver qual era o barato. Colecionou bolhas assassinas nos pés e ácidas impressões terrenas sobre os peregrinos. Um dos comportamentos que lhe chamaram atenção era como iam se livrando de lencinhos, pulseirinhas, bandanas até lhes sobrar dois elementos – o estritamente necessário e o simbólico, como a cruz do peito ou um retrato.
Stevan se enxerga nos mendigos que atende ao balcão. Em meados de 2014, ainda hóspede do Hotel Lótus, na Avenida Marechal Floriano, entendeu que só lhe restava morar na rua. Sem emprego e sem afetos, não tinha mais como pagar as diárias. Virou estatística – de acordo com a “espiral da pobreza”, calculada pelo Ipea, em cinco-seis meses um assalariado que se vê sem ocupação perde tudo o que acumulou, podendo levar até dois anos para se reerguer, com sorte, é claro.
Alheio à força diabólica da tal espiral, Stevan colocou sobre a cama o que sobrou dos tempos que tinha família e carteira assinada. Ainda conseguiu rir de suas memórias: ao chegar no Paraná, em 2002, achou que São José dos Pinhais era Curitiba – as duas tinham Rua XV. Depois selecionou o suficiente para encher duas mochilas pequenas. O resto deixou por lá. Ao descer a escada, rumo à primeira noite de abandono, mirou na Rodoviária: fingiria ser um viajante, à espera de um ônibus que nunca chegava.
O truque colou por algumas semanas. A Guarda Municipal, a administração, o fiscal, não sei mais quem, não faltou gente para lhe pregar um passa fora, sem chance para explicar que pertencia à categoria “morador de rua aprendiz”. Ouvi-lo faz lembrar Tom Hanks em O terminal, mas sem Spielberg na direção. O ano de 2015 entrou já com Stevan oficialmente no posto de morador de rua. Teve ajuda, é verdade. Um certo Jair, o primeiro a lhe estender a mão, contou-lhe os segredos dos perdidos na noite – de como se proteger dos cocô-boys, recalcados e desalmados dos que jogam álcool e ateiam fogo na turma do sereno. Fofocou onde encontrar as melhores sopas – com picos de audiência para o “rango dos evangélicos”, servido na frente da Catedral. Recomenda.
Sem endereço fixo – viveu na Rua Estados Unidos, no Bacacheri, “onde fiz boa vizinhança”; flanou pelas praças Rui Barbosa e Tiradentes; deu rolês nas cercanias do Mercado Municipal. Viu um esfaqueado. Um enlouquecido. Um traficante. Talvez mais do que um. No bureau de empregos, o Sine, só ouviu “não”. Amargou uma depressão de dar dó. Ainda não sabe dizer se Deus se infiltra no meio dos espoliados, como reza a piedade cristã. Se o faz, merecia um Oscar de Melhor Ator.
Por ironia, Stevan dormiu umas tantas noites na Rua Dr. Faivre, na frente de onde hoje trabalha, como atendente no Guarda Volumes. Nas horinhas de folga, lembra ter estendido o papelão ali, bem perto de um orelhão. Fazia-lhe bem ficar imaginando que o telefone público podia tocar. Do outro lado da linha, alguém a sua procura. Nunca aconteceu.
A história mudou de página no instante em que uma assistente social gastou tempo conversando com ele. Lembra de uma expressão usada pela mulher – e a repete sempre que pode: “Você precisa voltar à sociedade organizada”. Nem nos melhores de seus dias – em companhia do pai e do irmão, empregado na periferia de São Paulo – tinha ouvido algo tão bacana. “Sociedade organizada”, repete aqui e ali o sujeito que ganhou uma cama num abrigo da Rua Rockefeller e hoje é morador de um condomínio social no Campo Comprido. Planeja fazer carreira como cartunista, pois é dado à pena.
Em tempo. Stevan se parece aos personagens da jornalista bielorussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel, autora de Vozes de Tchernóbil. A exemplo, resiste em ser resumido a uma tragédia. Se a gente não insistir, mal fala de suas dormilanças no paralelepípedo, à mercê dos ratos e baratas. Para ele, isso é banal. O que lhe importa é contar que a rua está cheia de casas que mal podemos ver. Dizem que cabem num saco. Talvez não.