Tenho para mim que algum nobre deveria reeditar o livro Alma das Ruas, da professora Maria Nicolas (1899-1988), transformando-o numa Bíblia municipal. Explico.
Maria Nicolas hoje é nome de colégio na Vila Izabel e sua obra mais doce envelhece nalguma estante, debaixo das benesses da naftalina. Qualquer um que tenha folheado o texto não me deixa mentir. Acacianismos à parte, Alma é um camafeu literário. Espécie de dicionário biográfico, perfila com bico de pena os patronos de nossas principais vias e avenidas.
Imagino que a professorinha o pensou como um Michaelis de província. Dentro da jardineira, ao cruzar a Rocha Pombo ou a Mateus Leme, os passageiros o folheariam, com o peito em chama, ufanando-se da terra em que nasceram.
Cá nos meus delírios, imagino a nova edição em versão multiplataforma: um audiolivro acoplado ao GPS dos carros. O automóvel seguiria seu destino e a maquininha explicaria, em maviosa voz sintética, não só onde virar, mas também a identidade das almas presas aos postes.
Haveria sói dificuldades, por certo. A cidade cresceu muito desde os tempos em que a autora ganhava seu pão na biblioteca da Assembleia Legislativa, onde, vale dizer, a alma de Maria não habita mais. Desde então, parece ter faltado ilustres para batizar nossas 80 mil ruas. Mas deixe quieto. O Alma das Ruas em versão digital aumentaria nossa cultura geral, dando-nos a conhecer as entranhas e as estranhezas da cidade.
Um dos casos mais pitorescos é o Moradias Belém, nos rincões do Boqueirão. Na década de 1980, o local era uma favela. Na gestão do saudoso arquiteto e urbanista Rafael Dely junto à Cohab a área se tornou um recanto habitável, com uma dezena de ruas, a maioria batizada em homenagem a trabalhadores humildes. Quatro das vias têm o comprimento de um quarteirão e se chamam Do Gari, Do Barnabé, Do Tratorista e Do Operador. A Dos Jardineiros, um tantinho maior, tem ares de Linha Verde microrregional, mas faz tempo que não ganha um trato.
Passei uma tarde circulando por lá. Bati palmas nos portões e fugi da fúria dos cachorros. Puxei conversa fiada com a dona Iolanda de Paiva, cuja casa, por coincidência, foi pintada de "cenoura gari". Com o vigia aposentado de bom nome, seu Cirineu. Com a serigrafista Ida Herr, que é só elogio. "Aqui não tem maloqueiro", avisou, para minha tranquilidade.
A quem interessar possa, nenhum gari mora na Gari nem sequer a rua tem um que lhe varra o lixo. Também não encontrei viva alma que ainda saiba o significado da palavra "barnabé", ali tomada por sujeito abestalhado, quando na verdade é sinônimo de servidor público do último escalão.
Conforme apurei, os moradores das não mais de 15 residências da pequena Rua do Barnabé ouvem piadinhas infames na hora de fazer crediários. Um deles, o marceneiro Darci Soares, chegou a pedir que o local fosse rebatizado. "Sou de Araçatuba e lá tem essa esquisitice não."
Entre os melhores momentos do passeio vai ficar o papo com a "Moça dos Sonhos". Ela se chama Josiane de Jesus, tem 22 anos, circula num Fiat vermelho, munido de possante caixa de som. Dali sai a mesma voz que se ouve em tudo que é canto de Curitiba, pausada e hipnotizante, a nos colocar em disparada, com o tupperware nas mãos: "Fregue-sia, doce de nata, doce de leite..."
Segundo a Josi, a voz é do "Luís do Sonho", com folga o gogó mais famoso da paróquia. "Vendo até 250 sonhos quando passo pela Gari e pela Barnabé", festeja a loura. Claro, ela tem seu purgatório anda enjoada do cheiro das frituras açucaradas. "Um pesadelo."
Outra surpresa tive no "Clube de Mães Unidas Venceremos" onde cinco senhoras tricotavam biquinhos de pano de prato. Valeu por um café da tarde, com sonho de nata. Falamos das tragédias de uma delas e das delícias vileiras. "Vim do Prado Velho. Mas aqui aprendi o que é viver", declara Maria Clara Kowalski, 62 anos, moradora da Barnabé.
Essa Maria não mudaria o nome da rua por nada neste mundo. "O tal do Barnabé devia ser um sujeito engraçado", inspira-se. A frase é boa vai ficar linda na gravação do GPS. Quiçá, batiza uma nova receita de sonho. Na voz do Luís, que lindo.
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