O educador Fernando Gois, 56 anos, está de malas prontas. Vai partir. Na bagagem, uma troca de calça e de camisa, RG e CPF, óculos de grau e relógio. Leva a Bíblia e um livro de salmos. Caderneta com caneta. Cobertor curto, de campanha. Um pedaço de papelão para lhe servir de cama nas noites de sereno. Isso mesmo, Fernando ex-frade carmelita, fundador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba, iniciativa reconhecida pela Unesco vai se tornar morador de rua e andarilho. Não tentem convencê-lo do contrário, alegando que o mundo não precisa de mais um mendigo. Será em vão.
Quando os conhecidos sabem da decisão, sabatinam o Fernando com questões de ordem prática e teórica. Às razões práticas: não, não vai de tênis com amortecedor, mas de sandálias de borracha, meio de transporte que lhe rendeu o augusto título de "monge pé de chinelo", desferido por um político em fúria. Gois preferiu tomar como um elogio assim ficou.
Tempos atrás, lhe presentearam com uma sandália de couro. "Muito ruim..." Deu-a a um carrinheiro em troca de uma de tiras, bem surrada, com a logomarca do Paraná Clube. Ótimo negócio e ainda manteve a fama.
Sim, goza de boa saúde: não tem olho de peixe, tendinite, esporão, fratura de calcâneo. Nem calo nem bolha. Ah, agradece, mas dispensa o protetor solar. Tem o pelo duro de um sertanejo, avisa esse brasileiro de origens sergipanas. Quanto às quatro refeições diárias, vai comer o que pintar. Dá certo, garante: já fez um test drive. Melhor, três.
Dia desses, operou uma caminhada de Curitiba até a "4 Pinheiros" 51 quilômetros, nove horas a pé, sua marca olímpica. Carregava água e oito bolachas, que lhe foram pedidas por um trecheiro com o estômago nas costas. "Doeu, confesso. A maior briga é com a gente mesmo." Ao chegar ao pedágio, uma moça insistiu para que ele levasse um panetone, "peninha". Topou, para alegria dos meninos do projeto, que o esperavam. Devoraram juntos a iguaria de supermercado. Os religiosos chamam isso de providência. Os demais, sorte grande.
Outra prova de fogo se deu meses atrás. Gois se integrou ao movimento dos Peregrinos e Peregrinas do Nordeste. Andou 150 quilômetros em 17 dias, uma "moleza" digna de Dorival Caymmi. "Sou mais rápido que eles", gaba-se. A regra no grupo é seguir ao sabor do vento e da caridade de estranhos. Ninguém leva nada. Não passou fome nenhum dia.
O terceiro teste ocorreu em Salvador, junto aos sem-teto que se abrigam numa igreja. Dessa vez, o ativista ouviu histórias de gente que passou mais da metade da vida na rua. Com as informações, montou suas estratégias. Eis o plano: parte em janeiro, rumo a Aparecida, para antes pedir as bênçãos da Padroeira do Brasil. Serão 400 quilômetros, na raça. Na ida, pernoita em cidades de beira de estrada quer saber como está sendo tratada a turma da rua. Algo em contrário, bingo, fará vigília na porta da prefeitura. O ponto final será a Praça da Sé, de onde pretende despachar nos próximos anos. Apareçam para uma visita.
A paixão de Fernando pela rua soma bem uns 30 anos. Nos tempos de noviço carmelita, sentiu-se chamado a estar junto aos mais pobres entre os pobres. Queria seguir os passos de São Francisco, Charles de Foucault, Teresa de Calcutá, padre Alfredinho... Bem que tentou. Fez-se boia-fria comendo seu primeiro macarrão azedo na lata. Fez-se morador da favela da Vila Lindoia o peixe achado no lixo por uma vizinha, depois de uma fervura, desceu-lhe que uma beleza. Fez-se um dos muitos que dormiam na Praça Rui Barbosa, em Curitiba.
Foi ali que o festejado morador de rua "Neguinho do Pé Cortado" lhe passou uma carraspana. Disse que a concorrência no relento andava brava. Que o melhor que podia fazer pelos pobres era mostrar como sair dali. Resignou-se. Criou a Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, mas não teve uma vez em que viu mendigos sem desejar estar com eles. "É uma questão mística", informa, quanto às razões teóricas.
Sabe que é difícil explicar. A mendicância é sua subida ao Monte Carmelo. Perguntam-lhe se não tem medo de facadas, de que lhe joguem ácido, da polícia, dos bebuns, do escuro. Os guris do projeto ameaçam segui-lo estrada afora. Acha graça de tanta gastura. E dá a palavra final: "Não, senhores. Agora é a minha vez."
Fernando, o andarilho
Nos anos 1980, quando noviço carmelita, ele se sentiu chamado a viver com as pessoas da rua. Não conseguiu. Refugiou-se na espiritualidade. Mas não sossegou. Nos anos 1990, criou a Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, apontada pela Unesco como uma das melhores iniciativas latino-americanas em prol da infância. Seu projeto está encaminhado. Resta-lhe realizar a missão pela qual espera faz três décadas. Poucos compreendem. "Eu me coloco no lugar delas. Mas é difícil explicar". Confira ensaio fotográfico de Marcelo Andrade feito com Gois na Praça Osório, Centro de Curitiba
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