O ativista Toni Reis, 52 anos, 1,87 metro, é um homem com nervos de aço. Sua resistência titânica a golpes baixos merecia ser estudada pela ciência. A agressão, em vez de metê-lo em conchas, estimula sua propalada capacidade de argumentação. É de rolar de rir saber como domou um idoso que durante um evento o cutucava e o chamava sem parar com o nome daquele animal, no aumentativo. Não faz muito tempo, enfrentou seis horas de guerra santa com o pastor Silas Malafaia – um de seus mais ferrenhos desafetos. Num dos momentos mais ousados da peleja, avisou que o apoiaria caso decidisse se casar com o deputado Marco Feliciano. Esse é o Toni, um sujeito hábil em desarmar metralhadoras apontadas contra seu peito – qualidade que explica em parte como conseguiu transformar a ONG que fundou, o Grupo Dignidade, em uma referência na luta pelos direitos dos homossexuais e transexuais brasileiros.
Mas há um episódio que rouba de Toni a fleuma de diplomata – a lembrança do dia 14 de março de 1992. Ele chora como se fosse o último capítulo da novela das seis. Naquele sábado, há exatos 25 anos, o paranaense e seu companheiro, o britânico David Harrad, ficaram horas plantados no apartamento em que viviam, na Rua Cruz Machado, à espera de outros militantes das minorias sexuais. Planejavam formar com eles uma associação. Esperava um mínimo de 50 candidatos. “Estourei muita pipoca para recebê-los, mas não veio ninguém.” Em resposta, abriu um livro ata e – sozinho com David – fundou o Geep, Grupo de Entendidos e Entendidas do Paraná. De raiva, nas semanas seguintes, não sossegou até conseguir meia dúzia de colaboradores.
O resto da história é conhecido. O Geep virou o Dignidade, organização hoje administrada por 70 voluntários e capacidade para atingir 10 mil pessoas. É cercada de ONGs por todos os lados. Estima-se que o grupo tenha se desdobrado em pelo menos uma dezena de outras organizações e que outras 60 se inspiraram em seu estatuto. É o berço de pelo menos 3 mil militantes. No começo, era o SUS dos gays pobres. Agora, tem parte em núcleos que se espalham pelo Ministério Público e Secretaria da Justiça.
Cinco ramificações do Dignidade são suas vizinhas de porta, no quarto andar do prédio que ocupa na Praça Carlos Gomes, Centro de Curitiba. Juntas, desarmam bombas em escala bélica. “Sou agredido todos os dias. Minha rotina é recolher as ofensas que me fazem nas redes sociais, registrá-las, ir a cartórios e encaminhar queixas para os 18 advogados que trabalham com a gente”, confidencia Reis. Já recuou dos processos mais de uma vez, mediante pedidos de desculpas. Em casos mais cabeludos, no entanto, não arreda os pés. Ir às últimas instâncias faz parte da luta pela tolerância. “Nos acusaram até de fazer lavagem cerebral, de querer transformar todo mundo em homossexual”, ilustra.
A agressão, em vez de metê-lo em conchas, estimula sua propalada capacidade de argumentação
Em 25 anos, o grupo experimentou pelo menos um cisma – em meados da década de 1990, quando incluiu a pauta das transexuais e travestis, desagradando, creiam, os setores conservadores da ala gay. Depois, provou de uma dolorosa devassa fiscal. Foram meses sem projetos e o perigo anunciado de se juntar à sociedade das ONGs mortas. Não aconteceu, por motivos que os muitos observadores ainda se ocupam em sistematizar.
A lista de virtudes heroicas do Dignidade é conhecida. “Acho que a gente veio ao mundo para converter os fariseus”, brinca. Mania? Insistir. A turma da casa chegou a visitar todos os ministros do STF, em meio a uma das muitas contendas sobre igualdade. Para conseguir a adoção do nome social nas escolas de Curitiba, fez circular mais de 70 ofícios pelos labirintos da burocracia. De todas as boas práticas que adota, contudo, a mais eficiente é desviar dos perigos do ressentimento. Mesmo não sendo recebidos com banda de música, Toni, David e seu séquito não deixam de comparecer aos centros do poder. Aconteceu mais de uma vez de políticos, profissionais liberais e gestores não comparecerem para receber prêmios a eles destinados pela entidade. Sem mágoa. O Dignidade vai até eles – com fotógrafo. Toni, com seus ares de religioso – adolescente, foi barrado na Congregação dos Irmãos Maristas, ao falar dos dilemas de sua sexualidade –, ganhou passaporte para entrar nos ambientes mais contritos. Ele admite: fosse “pintoso”, como se dizia, teria encontrado mais resistências. “Eu sou convencional. Já me chamaram de gay higienizado e heteronormativo”, conta.
Some-se que o Dignidade acerta ao não se limitar aos embates comportamentais. Sanitaristas e infectologistas, por exemplo, têm no grupo um cordão de voluntários para ir a praças, saunas e bares falar sobre a contaminação pelo HIV, violência e direitos. No momento em que você, caro leitor, lê esta coluna, alguém da ONG milita em prol da saúde num dos muitos redutos homossexuais subterrâneos; ou ampara um soropositivo que ameaça se suicidar. Em suma, o Dignidade imprimiu caráter, o que lhe deu fôlego para pular umas tantas fogueiras.
Na pequena sede do grupo, a regra é não se deixar pela sanha dos caretas. É espaço aberto, uma usina. Quem se aventura por lá volta e meia encontra professores da rede pública, em busca de subsídios para ajudar os alunos adolescentes. É aos mestres que a gurizada recorre logo que se sente diferente. Não saem de mãos abanando, tamanha a quantidade de livros e vídeos que a organização produziu.
Num canto se pode ver o contido David, às voltas com burocracia. Noutro, a advogada Gisele Alessandra Schmidt e Silva, em tese a primeira mulher trans a se formar em Direito. A seu lado, o visitante holandês Peter Dagmeyer – engrossando a fila de estrangeiros que estagiam no local. No centro da cena, Toni – que entre os seus se revela um humorista digno do Porta dos Fundos. O esquete mais repetido é como ele e David se conheceram, em Londres, contado no melhor espírito das comédias românticas inglesas. O episódio só não tem mais audiência que a maratona do casal para adotar os hoje adolescentes Alysson, 16 anos, e Jéssica, 14 anos, e o menino Felipe, 12 anos. Em tempo – vai batizá-los no dia 23 de abril, na Catedral de Curitiba.
O trio Harrad-Reis goza de um privilégio dado a poucos – corrigir Toni sem que lhes seja passado um sabão. “Pai, que coisa antiquada esse negócio de se dizer gay. Isso não existe – o que existem são pessoas”, corrigiu-o Alysson, dias atrás. Mesmo sem concordar, acatou. “Sou da tradicional família gay curitibana”, brinca, ao tirar R$ 10 do bolso: os filhos, que circulam por lá, lhe pedem um sorvete. Antes de entregar a nota, uma cobrança: “Já ensaiaram?”
Toni se refere à coreografia que a prole fará na noite desta sexta-feira, na Sociedade Thalia, como parte das comemorações dos 25 anos do Grupo Dignidade. Dançará I will survive, sucesso na voz de Gloria Gaynor, hino extraoficial da comunidade LGBT. A festa será para 300 pessoas, entre elas a sub-procuradora-geral da República Deborah Duprat.
Se no sombrio 14 de março de 1992 uma cigana dissesse a Toni que tudo isso iria acontecer, certamente lhe soltaria os cachorros. Ainda bem que decidiu viver para contar. Ao avaliar pelos palpites dos amigos, esta noite o sujeito de resistência bruta, expert em dobrar os que lhe atacam, vai se permitir mostrar os olhos marejados. Mas só por hoje. Como naquele dia, ele tem mais o que fazer.
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