Em qualquer roda de conversa em que o assunto seja o arqueólogo Igor Chmyz, alguém há de compará-lo a Indiana Jones – o cientista aventureiro vivido por Harrison Ford. Não se trata de exagero. Em vias de completar inacreditáveis 80 anos, a biografia de Igor está repleta de lances cinematográficos. A lenda que o ronda é a mais pura verdade.
Desviou de aranhas caranguejeiras que pareciam existir apenas no laboratório de efeitos especiais de George Lucas. Safou-se de dois naufrágios – de um deles, o espanto foi vê-lo sair pirilampo de um barco chocado contra a costa. Ele ri solto ao lembrar da “fina” que podia tê-lo feito virar paçoca. Mal mexe as temidas sobrancelhas – seu censor de que está pronto para a briga – ao falar de cobras cascavéis e outros demônios rastejantes que encontrou pelas encruzilhadas em nada menos que seis décadas dedicadas a trabalho de campo.
Mais? Nos tempos da construção da Usina de Itaipu, fez a pé o trecho entre Foz e Guaíra, acompanhado de seu séquito, num típico “salvem das águas tudo o que puderem”. Em troco, atraiu a desconfiança da ditadura militar – o que pode ter lhe garantido o telefone grampeado pelos arapongas e muita paciência torrada, prestando satisfações a quem não merecia.
Tudo começou em 1956 – quando era ainda um guri magricelo de União da Vitória, um desses lugares em que Paraná se confunde com Santa Catarina. A pessoa é para o que nasce. Igor achou material arqueológico, trouxe-o para Oldemar Blasi, do Museu Paranaense, que o apresentou a Loureiro Fernandes. Em cadeia, todos se encantaram com o menino prodígio. Assim permanece. Como se por feitiço, o frescor da mocidade nunca deserta dele, um tipo sempre a bordo das botas que o levaram por tudo o que é buraco deste imenso Paraná. Diz-se que sua disposição, digna de um coronel Fawcett – somada à fleuma de quem não é muito de conversa fiada –, arrebatava discípulos. Apaixonou muitos corações à cata de um herói, tal e qual o Indiana das películas.
Também lhe cabe outra comparação – a com o detetive Sherlock Holmes. A começar pelo cachimbo, parte de seu retrato tanto quanto o nariz de águia e o pavio curto. O sensor de presença de Chmyz passa pelo perfume do fumo Escorial. É assim, em particular, no seu acampamento de arqueólogo – a cobertura do Edifício Dom Pedro I da Universidade Federal do Paraná, 12.º andar.
Chmyz é a última personalidade da idade de ouro da ciência na UFPR
Oficialmente, o QG se chama Cepa – Centro de Pesquisas Arqueológicas da UFPR. Na prática – e sem demérito para os demais pesquisadores que lá atuam –, o local é o andar do professor Igor. Não deixa de ser curioso: fica bem no topo o posto de trabalho do homem que veio ao mundo para escarafunchar subterrâneos. Daquelas alturas, vê-se uma Curitiba de paredões tolos, alheios ao fato de que a verdade é mais embaixo, nos recônditos que o cientista não só conhece como defende no braço, se preciso for. Experimente para ver.
Não raro, ainda hoje, Igor parte do puxadinho da cobertura para duas ou três expedições ao mesmo tempo, num claro desdém às distâncias, às burocracias e às prováveis dores nas costas. As Reduções Jesuíticas, como Ciudad Real Del Guaírá, são seu quintal. Anda às voltas com Adrianópolis e com a Fazenda Capão Alto, em Castro. Um Sherlock – que investiga e evita crimes, por que não? Segundo consta, não passa um mês sem “se mandar” para algum sítio arqueológico, em cafundós cujos nomes escapam até ao mais hábil dos recenseadores. Também não fica um dia sem perambular pela capital paranaense – uma das obsessões que alimenta entre uma baforada e outra no cachimbo.
Em seus momentos mais casmurros, o arqueólogo detetive diz que não vai mais andar pela cidade. Só de raiva. Cansou de dar murros em ponta de faca. São célebres seus arranca-rabos com burocratas, construtores, gestores distraídos e ignorantes em geral. Basta um grande empreendimento iniciar o bate-estaca sem chamar a turma do Cepa. A quem interessar possa, Igor Chmyz já parou muita obra e botou gente graúda para correr para a saia da mãe. Tem motorista de escavadeira que deve dar a ré só de vê-lo virar a esquina. Nessas horas, nem Indiana nem Sherlock – é ele mesmo.
Filho de um professor ucraniano – Filemon, sobrevivente da Primeira Grande Guerra, feito barbeiro conhecido em União da Vitória –, Igor faz o tipo que não despreza uma fronteira, uma trincheira, uma ameaça de bombas. Graças a seu apetite homérico para defender o patrimônio escondido, foi preservada a calçada do século 19 da Praça Tiradentes. É só um exemplo, entre os muitos salvamentos nascidos de seu charme selvagem.
Paralelo à militância, faz o tipo aplicado, um estudioso ocupado do que podem lhe dizer os cacos antiquíssimos que lhe fazem companhia no 12.º andar. Dormem em sacos e mais sacos de algodão amarelado – e esperam por Chmyz. Ainda que seu departamento goze dos préstimos dos computadores – e ele, da assessoria direta da arqueóloga Roseli Ceccon, sua mulher – , mantém na ativa as fichas escritas à mão. Somam mais de 2 mil e estão acomodadas num arquivo de lata, verde e velho, prestes a atrair o olho gordo de um antiquário. Preserva do mesmo modo cadernos puídos, com anotações precisas de origem, ano e descrição de cada coleção encontrada por ele e sua equipe. São 5.347 registros. Cada um pode representar dez ou 500 peças. É o infinito.
A zeladora está avisada de que nada pode ser tirado do lugar. Obedece, temendo cometer um pecado que brade ao céu. Bradaria. Difícil não se intimidar com datações de 3 mil ou 4 mil anos, ali comentadas como se fossem dias e horas. De tanto lidar com o tempo remoto, aliás, Igor desenvolveu mais facilidade em tratar de milênios que de acontecimentos ocorridos há uma década. Foi assim quando, em 2007, lhe deram a aposentadoria compulsória. “Já?” Completara 70 anos, que injustiça. Fez de conta que não era com ele. “E ainda por cima fiquei livre de ir a reuniões de departamento”, brinca.
A propósito, Chmyz é a última personalidade da idade de ouro da ciência na UFPR. Era o caçula de uma estirpe da qual fizeram parte José Loureiro Fernandes, Reinhard Maack (catedrático inclemente, com quem se estranhou), Jesus Moure, Vladimir Kozák, Riad Salamuni, João José Bigarella, Cecília Westphalen e Altiva Balhana – além de Oldemar Blasi, que não se filiou à universidade. Faz parte da Terra de Gigantes, à revelia dos fracassos que enfrentou, todos devidamente anotados, como cabe aos nobres. Um desses fracassos pode ser reparado, bem pertinho, no Centro da cidade.
A dizer: um dos presentes que a prefeitura ou o estado poderiam dar ao arqueólogo na festa de seus 80 anos, em novembro, seria o direito de escavar uma área qualquer da zona central. “Qualquer uma”, reforça – o piso de uma lojinha de turcos que seja. Ele tem certeza de que vai encontrar cerâmicas, paredes de taipa de pilão, utensílios em geral. A crença de que tem coisa de valor debaixo do chão vem do fato que, na Curitiba de tantos banhados, muitos nivelamentos foram feitos à custa de terra retirada da Praça Tiradentes, por exemplo. A Praça Zacharias, garante, recebeu parte desses “transplantes arqueológicos”. Se lhe permitirem, há de datar cada apetrecho, colocá-lo em sacos de algodão, anotá-lo, revelar o que diz. Seria outra vez sua resposta ao pouco caso, à barbárie, à falta de memória. Um exercício da teimosia cívica, graças à qual nunca será esquecido.
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